Realizou-se há dias um referendo promovido pela Ordem dos Advogados, no intuito de apurar se os advogados, obrigatoriamente inscritos na Ordem como condição para o exercício da profissão, poderiam deixar de contribuir para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e se assim o entendessem, passar a contribuir para a Segurança Social pública.

Não é objecto deste texto abordar as numerosas questões legais, constitucionais e sociais, que uma matéria deste teor comporta para todos os envolvidos – actuais e futuros beneficiários – mas reflectir um pouco sobre o que é hoje o exercício da profissão de advogado, pois é nessa questão, que reside realmente o problema que conduziu ao referendo promovido.

Quando a CPAS foi constituída há muitos anos, existiam poucos advogados (não confundir com licenciados em Direito, noutras profissões) e a sua larguíssima maioria exercia a profissão em regime liberal. Isto é, não eram empregados de ninguém, tinham o seu próprio escritório por cujas despesas de funcionamento eram responsáveis, partilhado ou não com outros colegas, mas sem nenhuma dependência hierárquica ou até funcional entre eles. Se tivessem êxito na profissão e para ter sucesso era preciso ter clientes, teriam uma vida pelo menos confortável. Se não conseguissem a independência profissional e a subsistência económica regular – condição essencial para um profissional liberal – o mais avisado seria mudarem de actividade e passarem a usar as habilitações que possuíam para outra profissão remunerada e menos contingente que a advocacia liberal. Este seria em geral o enquadramento e as opções à disposição no Séc. XX.

O que hoje ocorre com o exercício da advocacia, não tem rigorosamente nada a ver com este filme que acabo de descrever.

Os advogados hoje, exercem a sua actividade de modos inteiramente diferentes do modelo tradicional do século passado. Sem pretensão de ser exaustivo, diremos que existem as seguintes “modalidades”: advogados que são sócios de sociedades de advogados sob a forma civil, muitas vezes não exercendo na prática a profissão, mas apenas gerindo a carteira de clientes da Sociedade, sendo o trabalho jurídico e forense desempenhado por outros advogados com contratos de prestação de serviços com essa sociedade; advogados que trabalham em exclusivo com contrato de trabalho, para empresas e instituições e que portanto não possuem qualquer clientela própria, sendo o empregador o seu único “cliente”; advogados que trabalham na Administração Central e Local como funcionários públicos ou com contrato de trabalho ou com contrato de prestação de serviços (vulgo avenças) e que portanto, pelo menos tendencialmente, também só possuem o empregador como seu único “cliente”; advogados que ainda teimam em continuar a sua profissão em regime de “prática isolada”, nos mesmos termos da generalidade dos seus colegas do Séc. XX , com o seu próprio escritório por cujas despesas de funcionamento são responsáveis, partilhado ou não com outros colegas e finalmente (hoje quase uma relativa maioria na profissão) advogados que trabalham exclusivamente, no regime de Apoio Judiciário, ou seja aquilo que vulgarmente se designava por patrocínio oficioso e do qual os advogados no Séc. XX fugiam como o diabo da cruz.

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Hoje, os advogados inteiramente dedicados a este patrocínio oficioso – para as pessoas ou empresas carentes de recursos para contratarem directamente um advogado – são milhares. Estes nossos colegas, não possuem escritório ou instalações, pois trabalham em casa ou nos tribunais, não têm nenhum (salvo ocasionalmente) cliente, não têm empregados forenses que deles dependam. Ao fim ao cabo, são advogados indirectamente empregados do Ministério da Justiça que é quem lhes confere a remuneração dos patrocínios judiciários e ainda assim lhes paga com significativo atraso em relação aos momentos em que praticam os actos jurídicos.

Com este panorama na profissão, a única ligação entre todos é apenas o título profissional. Em tudo o mais, a prática e os interesses são completamente diferentes.

Referindo por ora, apenas as matérias da previdência, temos a seguinte situação: Os advogados que trabalham para empresas com contrato de trabalho, têm de descontar para a Caixa de Previdência da Ordem e para a Segurança Social geral. Os que são funcionários descontam também para a ADSE. É certo que um dia – se a saúde lhes permitir lá chegar – terão uma pensão de cada instituição, mas até lá suportam no dia a dia dois descontos; os colegas que trabalham para outros advogados, também têm de descontar um valor mensal mínimo fixo para a CPAS, independentemente da remuneração que recebem ser variável, fixa, pequena ou razoável; os advogados que trabalham no apoio judiciário estão na mesma situação: nada no seu rendimento é fixo ou sequer previsível, mas têm de pagar um valor mensal mínimo fixo para a CPAS. Na verdade, trabalhando estes advogados, de facto em exclusivo, para o Ministério da Justiça, bem vistas as coisas, até se poderiam lembrar de pedir a inscrição na ADSE…

Estamos, por conseguinte, com um regime inconsistente face a uma realidade que se alterou profundamente nos últimos anos. O resultado do referendo da Ordem dos Advogados de dia 2 de Julho, mais que a vitória ou derrota das posições de cada um, vem demonstrar inequivocamente, que de facto, já temos “duas” Ordem dos Advogados. Não será difícil perceber qual o conjunto de advogados que votou sim à opção de descontar para o regime previdencial que cada um quiser e quem votou contra essa possibilidade. É que se somos todos advogados, na verdade, não já não estamos a exercer a nossa profissão do mesmo modo e os interesses – mesmo os corporativos – já não são confluentes. É esta a realidade.