Decorria o ano de 2004, quando George Steiner foi convidado para dar a décima Conferência Nexus, no instituto Nexus, na Holanda. Dessa conferência resultou um pequeno ensaio: The Idea of Europe, publicado no mesmo ano, e que contou com um prefácio de Durão Barroso. Dezasseis anos após Steiner apresentar o que, para ele, seriam os cinco pilares da ideologia do pensamento europeu, o autor morre, a 3 de Fevereiro de 2020, precisamente um mês antes de poder ver a Europa começar a perder a consciência de si própria.

A verdade é que os movimentos anti-racismo espoletados pela morte de George Floyd estão a tornar bastante visível um problema que é histórico e que está inserido na sociedade ocidental, de tal forma, que passa cada vez mais despercebido; o racismo e a discriminação. Daí que se encontre na destruição e remoção das estátuas, ou na alteração da toponímia de ruas e de praças, uma forma de alerta e combate para este problema. Não me espanta que nos EUA se derrubem as esculturas que celebram todo o mal causado a milhares de nativos e estrangeiros durante séculos, nem Steiner ficaria espantado já que, para o autor, «na sensibilidade e no idioma americanos as memórias mais fortes são as da promessa» (Steiner, 2004) e não os memento mori como o 11 de Setembro ou a Guerra do Vietname. O que salta à vista é o mimetismo-simpático dos manifestantes europeus bem como de várias instituições e governos da Europa, desde França à Inglaterra. A Europa molda-se não só pela passagem do tempo e pelas ideias de progresso, ela tem inscrita nas suas ruas e nos seus edifícios a marca do «tempo enquanto processo vivido», «a aura [do] tempo autêntico», que não pode ser esquecida nem apagada.

Façamos um breve passeio pela cidade de Coimbra e continuaremos a ter como vizinhos Miguel Torga, Zeca Afonso, Eça de Queirós, ao mesmo tempo que todos sabemos onde é o Pateo da Inquisição. «Há um lado negro nesta soberania da lembrança, na autodefinição da Europa enquanto lieu de la mémoire. […] As placas afixadas em tantas casas europeias não aludem apenas à eminência artística […]. Também comemoram séculos de massacre e sofrimento, de ódio e de sacrifício humano.” (Steiner, 2004). Se assim é, o que aconteceu, então, para que os cidadãos activistas europeus, os governos e as instituições cedessem? Que causas contribuíram para esta perda de relação com «a ideia de Europa»?

Byun-Chul Han apresenta-nos uma possível resposta a estas questões em Die Austreibung des Anderen. Para o autor sul-coreano, «fala-se hoje muito em autenticidade», «como acontece em toda a publicidade do neoliberalismo, [a autenticidade] é-nos apresentada como um adereço de emancipação» (Han, 2016), que nos encaminha para uma busca egóica pelo ser, que apenas recai sobre cada um de forma singular, sem relação com o espaço ou com o outro enquanto outro. Daí que, iludidos pela ideia de autoprodução de si mesmo, caiamos constantemente numa luta desprovida de valores que não os valores do mercado neoliberal. Tais valores tornam a luta contra o racismo e contra outras formas de opressão e discriminação numa batalha que mais não é a procura individual pela autenticidade. Desta forma, torna-se possível explicar como se pode estar sentado numa mesa de café a tirar selfies antes de uma manifestação, e como se retorna tranquilamente ao quotidiano sélfico após levantarmos o punho ao lado, mas não junto, dos outros manifestantes, como se vandalizam e removem estátuas e nomes de ruas, da mesma forma que se retocam as fotografias para lhes tirar o grão.

Não digo que não se lute, de todas as formas possíveis, contra tudo o que oprime e discrimina o humano, não devemos é deixar que o nosso agir caia num reagir muito mais próximo às leis do mercado do que às formas de reconhecimento e respeito do outro, e pelo outro enquanto outro, sob o perigo de não nos apercebermos que, tal como os nossos antepassados, continuamos a escravizar mas, desta vez, sem chicotear.

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