As políticas identitárias assentavam numa identidade delimitada que importava fazer valer: depois da identidade primordial, o proletário, entraram em cena a mulher, o homossexual, o não branco, o animal não humano, senciente, ou o nativo. Recentemente, porém, estas identidades circunscritas passaram a ser um elemento constitutivo de identidades compósitas. De início, acantonaram-se nas identidades de que estavam mais próximas; o eco-feminismo era mais uma corrente ecológica do que uma ideologia da emancipação feminina. Ou então não extravasavam a pequena seita universitária, como foi o caso do falo-logo-centrismo. Popularizadas, tornaram-se palavras de ordem, que acabaram por gerar a sua teoria: a interseccionalidade – ela própria um slogan. Há um aparente jogo arbitrário com fichas variadas que se recombinam: racismo climático, masculinidade tóxica, ecocídio, etc. Tudo se passa quase como se as identidades fossem escolhidas por um quantos-queres infantil. Se se trocassem os pares, os casamentos seriam igualmente felizes.

As identidades hoje já tradicionalizadas pretendiam constituir uma base de crítica social. Tratava-se de trazer para a praça pública, primeiro, e daí para a política e as políticas, o reconhecimento de identidades oprimidas, desprezadas, negligenciadas ou pura e simplesmente sem visibilidade. Apesar de separadas, num primeiro momento, uniam-se na medida em que eram minorias e, logicamente, definiam-se em oposição a uma maioria. Esta ocupava a posição central e ia distribuindo os lugares periféricos pelas minorias. A coligação negativa das identidades fundava-se no inimigo comum, que era um só e unificava em si todas as oposições. Para as minorias raciais, minorias que só o são na medida em que estão sob maiorias, o inimigo era o branco; para o feminismo era a masculinidade com os seus diferentes graus de «toxicidade»; para a minoria homossexual era o «hetero-normativismo»; para a minoria trans, a maioria cis; para os diversos entusiastas das diversas «epistemologias do Sul», onde campeiam as emoções, os corpos se libertam e a harmonia com os ecossistemas se inscreve na paisagem, era o habitante do hemisfério norte, racional, todo ele uma máquina de calcular, de calcular o lucro cuja obtenção viola as entranhas da Terra. Com meia dúzia de traços de ligação emerge a figura do novo Satanás: homem-hetero-cis-ocidental-lógico-produtivista, por aí fora e por aí adiante.

Esta concentração do mal reifica a sua criação: dela brotam actos indexados automaticamente a um só valor negativo. A imagem especular fica sob a alçada de uma mesma natureza, cujo valor é invertido: das minorias só pode provir o bem. A necessidade, já se observou, não se deixa persuadir, o que explica também a exigência obsessiva de tornar a linguagem conforme com a natureza, nada pode ser aceite como matéria controvertida sujeita à livre discussão. Uma tal naturalização tem pesadas consequências. A crítica dos dominantes visava obrigá-los ao reconhecimento dos dominados, das identidades minoritárias, e à sua tradução social e institucional; se, porém, se naturaliza o outro, adversário ou adjuvante, a categoria do reconhecimento despede-se de toda e qualquer pertinência, e a crítica deixa de ter objecto. Por um lado, o outro tornou-se uma identidade entre outras: é «racializado», «generificado», etc. e, portanto, já não pode recorrer a nenhuma forma de universalismo, sendo este, aliás, denunciado como um mero um pretexto para a segregação das minorias. Por outro lado, as relações entre as diversas identidades deixam de ser sociais. A crítica que tanto denuncia a sociologia objectivante torna-se um objectivismo sociologizante: na medida em que não pode renunciar a um intento crítico, exige a si mesma um conteúdo político-social e não meramente natural. Vê-se desse modo apanhada num fogo cruzado fatal. Nega ao dominador a possibilidade de agir livremente, de ser dono e senhor da sua vontade, ele está antes e malgré soi submetido sem apelação às suas determinações identitárias, ou seja, não é sujeito. Ao naturalizar maniqueisticamente o dominador, o identitarismo vê a posição de sujeito como algo reservado para si, o que, nas suas versões benignas, não pode aceitar, não só porque fundaria uma hierarquia na espécie humana, como também porque, fosse esse o caso, ficaria sem o inimigo, por dissolução do ímpeto crítico que só pode nascer da injustiça. Esta contradição leva a uma naturalização de segunda ordem, cujo operador é representatividade. Em todos os órgãos políticos, na vida social, mas até na esfera familiar, a representatividade é um requisito essencial para a não dominação ser devidamente homologada. O identitarismo pretende por esta via chegar a uma síntese entre natureza e política, delegando na primeira as decisões que incumbem à segunda: da natureza adequadamente realizada surgirá uma política justa. Mas quem diz adequada, diz boa; e assim o problema, expulso pela porta, regressa pela janela. É o destino habitual de um neo-estoicismo pouco reflectido: o programa de viver em conformidade com a natureza supõe sempre um conteúdo normativo nessa natureza. Além disso, a representatividade só na aparência pode desempenhar o papel que lhe foi atribuído. Enquanto espelho de identidades já existentes, pode revestir-se, à primeira vista, de uma certa plausibilidade, na medida em que pretende obedecer a um critério objetivo; no entanto, assim que o elemento deliberativo sobe ao palco, a representação separa-se da representatividade. Torna-se assim evidente que esta é tão-somente um truque para contornar a escolha política. Desde logo porque, ficando os próprios representantes subsumidos em várias identidades, qual delas levará a palma? E como escolher, se a escolha derivava precisamente de uma identidade? Haverá um princípio supra-identitário? Há, mas o identitarismo não o pode aceitar, uma vez que recusa qualquer referência universalista.

A par desta versão benigna, e, em parte, motivada pelas aporias em que incorre, a versão radical fixa e imuniza axiologicamente uma só identidade. Pior. Radicaliza a crítica e desfigura-a. Assume os traços de gangster identitário: agora é a nossa vez. Eis o lema infantilmente cínico. Claro que dessa forma fica cancelada a exigência crítica e as relações entre as várias identidades passam a ser meras trajetórias de carrinhos de choque conduzidos por cegos. Acresce que uma tal versão do identitarismo deita fora o bebé com a água do banho na medida em que ratifica todo o passado considerado opressor: tinha sido a vez deles. Melancolicamente, a história seria quando muito a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing.

Às dificuldades teóricas soma-se o desmentido na prática. As sociedades consideradas opressoras integraram progressiva e rapidamente um conjunto de reivindicações, alargaram de bom grado direitos e reconheceram identidades. Mas fizeram-no como sociedades democráticas e capitalistas, isto é, livres e ricas. Suficientemente ricas para criar histórias e identidades, pela subtração ao tempo de modos de vida e objetos, que de outro modo estariam votados ao inevitável desaparecimento que a pobreza, exigindo a reutilização de coisas e homens, implica – que se saiba não há gender troubles nas tribos amazónicas. Por outras palavras, as identidades não estão fora da sociedade, não exercem qualquer crítica do exterior; são sim produto da sociedade que abominam. A sua auto-estilização como marginal não passa hoje de kitsch político.

O que hoje se afigura novo é o total esgotamento do identitarismo, que se evidencia na ausência de identidades novas; actualmente o sujeito revolucionário é apenas um bric-à-brac identitário. A ars combinatoria das identidades constitui, contra uma política argumentada, uma tentativa desesperada de conservar o tom apocalíptico já adoptado há algum tempo, manter o histrionismo moral e emocional e reativar o gume da indignação criando retroactivamente uma propriedade identitária de que, afirmam, foram esbulhados. A interseccionalidade revela aqui o seu verdadeiro rosto, pretende substituir as identidades passadas, atribuídas, fonte de servidão, pelas identidades criadas a cada momento por um sujeito desencarnado. Substituiu deste modo as aporias do maniqueísmo pelas do angelismo da auto-criação. Mas como prescinde de um critério de escolha ético-político recai numa estética da existência que visa contornar a decisão; o caleidoscópio de identidades retira ao mundo o seu aspecto comum, onde todos os projectos humanos encontram a resistência objectiva que, por isso mesmo, os torna uma tarefa e não uma permanente fuga estetizante. As novas identidades interseccionais criadas por um sujeito absolutamente soberano não têm passado, nem solidariedades, não devem nada a ninguém – forma frustre de fazer da ingratidão uma virtude cardeal das relações humanas. Sem um chão comum, sem os pés na Terra dos homens, os novos anjos navegam à deriva pelos espaços infinitos que não os aterrorizam. Nesta forma contemporânea do niilismo consumado, trata-se, porém, de voltar a pôr em cima da mesa as fichas de um jogo viciado. E por vezes vicioso.

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