1 A acidentada Lei das Incompatibilidades

Após a aprovação da Constituição em 1976, tardou que fosse aprovada a lei que estabeleça o regime do exercício dos cargos políticos e de altos cargos públicos, pois só em 1993 só surge a primeira lei ( Lei 64/93) e é bem evidente o desconforto e as dúvidas que o poder político tem tido sobre esta matéria legislativa pois tal lei já sofreu 9 (!) alterações, a última das quais foi em Janeiro deste ano, mas as recentes polémicas e o não acolhimento favorável da própria mensagem do Presidente da República pedindo que se clarifiquem algumas das suas dúvidas confirmam estas dificuldades.

Ora o Artigo que recentemente esteve na base de sucessivas polémicas estabelece designadamente, que (bold nosso) :

Artigo 9.º – Impedimentos

  1. Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos estão impedidos de servir de árbitro ou de perito, a título gratuito ou remunerado, em qualquer processo em que seja parte o Estado e demais pessoas coletivas públicas.
  2. Os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10/prct. do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euro), não podem:
    1. Participar em procedimentos de contratação pública;
    2. Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação referidos na alínea anterior.
  3. O regime referido no número anterior aplica-se às empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo, detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau, uma participação superior a 10 /prct. ou cujo valor seja superior a 50 000 (euro).

pelo que importa esclarecer o porquê desta restrição, sendo interessante referir que esta disposição na versão inicial de 1993 ainda era mais bizarra pois só incluía os contratos de aquisição de bens e serviços excluindo os contratos de empreitada!

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2 Porquê a restrição sobre contratos públicos ?

 Os contratos públicos correspondem a linha de atividade progressivamente mais importante do Estado moderno incluindo vasto espectro de aquisição de obras, bens e serviços cujo valor global tende a ultrapassar 15% e que abrange levada percentagem de operadores económicos a qual, em Portugal, ultrapassa 50%.

Ora, quem contrata, as entidades adjudicantes, utilizam, pois, elevado valor dos recursos públicos através dos contratos públicos pelo que se compreende a necessidade de respeitar princípios exigentes de equidade, transparência, livre estabelecimento e “ Value for Money” os quais têm vindo a ser objeto de Diretivas da EU (as últimas aprovadas em 2014) e da sua transposição para o Direito nacional (Código dos Contratos Públicos).

Também é bem evidente que as entidades adjudicantes que integram a Administração Pública Central Direta e Indireta e bem assim as Empresas Públicas estão sujeitas à orientação do Governo pelo que quem o integra não pode também estar de alguma forma vinculado ou ser beneficiário de operadores económicos a quem contratos públicos sejam outorgados.

Eis porque não faz qualquer sentido estabelecer a tolerância dos 10% ou, ainda pior, dos 50 000 euros pois , em qualquer dos casos, o lucro que o governante, por via direta ou indireta, irá auferir em função de eventual contrato público pode não ter limite superior já que resulta da multiplicação de tal percentagem pelo lucro global gerado.

Convém ainda comparar esta tolerância com a não tolerância que o mesmo legislador adota em 2021 na LEI 30/ 2021 quando pretende garantir a independência entre operadores económicos a convidar para apresentação de propostas ( Artigo 113º-5) :

“…considerando-se como tais, nomeadamente, as entidades que partilhem, ainda que apenas parcialmente, representantes legais ou sócios, ou as sociedades que se encontrem em relação de simples participação, de participação recíproca, de domínio ou de grupo”

Ou seja, dois pesos e duas medidas, quando se trata de cargos públicos ou simples empresas.

Eis porque, para além de esclarecer dúvidas, deve corrigir-se esta tolerância de 10% a qual não tem qualquer fundamento substantivo.

O não funcionamento da Entidade da Transparência, após mais de 2 anos de atraso, com o argumento de não estarem realizadas as obras das suas instalações definitivas, como se não fosse possível terem usado outras provisórias das inúmeras que o Estado dispõe, também pode ser interpretado como sintoma de não prioridade atribuída ao desafio da transparência.

Em resumo, importa corrigir esta lei eliminando a tolerância dos 10% e dos 50 000 euros, pois quem compra não pode estar do lado de quem vende e tal limitação não significa serem cidadãos de segunda mas sim terem de escolher entre vender e comprar para assim serem cidadãos de primeira respeitando os necessários princípios da Ética pública.