O governo de António Costa, socialista e laico, tem replicado, imagino que piamente, comportamentos legitimados pela igreja católica de há séculos e contra os quais Martinho Lutero se insurgiu ao ponto de ser excomungado. Refiro-me às indulgências, essas que redimiam os pecadores, vivos ou mortos, do seu pecado, isentando-os de uma eternidade de suplícios.

Viram-se, inicialmente, estas indulgências com remissão total ou parcial dos pecados, recair sobre os soldados que combatessem os sarracenos e depois sobre os peregrinos de Jerusalém ou de Roma. Mais tarde, mediante contribuições para a construção e manutenção de catedrais. Ou como fez o quinhentista arcebisbo de Mongúcia, Alberto de Brandeburgo: endividado até aos cabelos com os Fugger de Ausburgo, os banqueiros seus credores que lhe haviam emprestado o dinheiro com que obtivera de Roma os seus cargos, vendeu indulgências que garantiam a morte em estado de graça para pagar a sua dívida.

Se a jurisdição eclesiástica permitia estas concessões, também as magistraturas civis pretendiam idênticas bulas para financiarem obras públicas. E obtinham-nas.

O lado B da indulgência é social: quanto mais poder económico, mais pecados e mais gravosos podem ser cometidos, por actos e omissões, pois haverá, mediante pagamento, a remissão dos mesmos e a absolvição do penitente.

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Um bom exemplo são os 110 milhões de euros em imposto de selo que não foram cobrados à gigante EDP. Não se sabe com que contra partidas, nem para quem, mas não serão com certeza para o contribuinte português.

Os vistos Gold foram uma indulgência que só terminou em 2020. Como indulgência é a situação contributiva dos residentes estrangeiros em Portugal e dos recentemente mais falados suecos devido à intervenção da ministra das finanças Magdalena Andersson que interpelou de forma directa, não apenas o governo português, mas os portugueses e a sua mansidão diante das circunstâncias de profunda e legal desigualdade. Com uma perversidade acrescida: os portugueses pagam em impostos ao estado a indulgência que este concede aos estrangeiros.

Livres do pecado, e da multa por transitarem entre conselhos, ou mesmo continentes, estão todas as figuras mais ou menos mediáticas, de actores de novelas a apresentadores de televisão. Seja com ou sem patrocínio de companhias aéreas, cadeias hoteleiras ou marcas de roupa, sapatos ou gelados. De modo mais discreto fazem-no também políticos ou endinheirados de forma geral comprovando que o descofinamento, à semelhança do confinamento, não é igual para todos.

Sobre as indulgências que continuaremos a pagar de anos e anos de negócios e negociatas da TAP, do BES, do Novo Banco, das berardices e das mil e uma trafulhices abafadas e consentidas, já nem há o que acrescentar.

Podemos dizer como Lutero, na tese 84, ao tornar pública a nossa posição contra a indulgências: que governo é este que (…) «por causa do dinheiro permite ao ímpio e inimigo redimir uma alma?»