Toda a gente, por estes tempos, não pára de falar, a propósito ou a despropósito, de racismo, xenofobia, sexismo, fascismo, e por aí adiante. E coleccionam-se, sob a direcção de auto-designados especialistas, expressões reveladoras desses torpes sentimentos, designando-as ao opróbrio geral. Os telejornais transformaram-se numa longa e penosa denúncia de modos malfeitores de falar. Não digo, obviamente, que em muitos casos o opróbrio não seja justo e as expressões merecedoras de condenação veemente. Mas, francamente, não me parece que seja sempre o caso.

É impressão minha, ou o pobre debate público (não só político) que aí temos concede cada vez mais importância à linguagem e mais em torno dela gira, como que a dar razão a um filósofo (Montaigne) que dizia que grande parte das nossas querelas são gramaticais? Longe de mim pretender que a linguagem não é importante e negar que o uso de certas e determinadas palavras traz consigo efeitos de variado tipo, alguns deles aconselháveis, outros eminentemente reprováveis. Além de produzir efeitos sobre a vida do espírito que vão do interminável bocejo a um desejável sentimento de curiosidade e genuíno interesse. Mas aquilo a que me refiro vai muito para além disso. É como se a linguagem tivesse absorvido tudo e se tivesse tornado impossível manter por relação a ela uma certa distância. Dito de outra maneira: como se cada palavra trouxesse consigo, unívoca, a intenção acabada e insusceptível de dúvida de quem a profere. Às vezes, o resultado das disputas até é divertido, como o da recente história do hipotético Museu das Descobertas, com a generosa contribuição de um grande número de iluminados, mas o seu acumular provoca, a partir de dada altura, um sentimento de tédio e de opressão.

Duas escolas se combatem no capítulo. A primeira é a dos adeptos do chamado “politicamente correcto”. Por razões que não tenho a certeza de conseguir explicar bem aqui, não simpatizo grandemente com a expressão, mas a verdade é que ela designa com alguma eficácia o campo dos amigos de uma regulamentação radical da linguagem através de um sistema de proibições com um alcance cada vez mais vasto a cada dia que passa. Significativamente, para os adeptos do “politicamente correcto” a regularização da linguagem aparece como um meio imprescindível de combate ao Mal que habita desde tempos imemoriais o coração humano e que, através da sábia administração de uma cura linguística, deverá entrar em retrocesso acentuado.

Na trincheira oposta, encontramos aqueles que, em parte como reacção ao poder crescente da posição adversa, encontram uma singular virtude, acrescida do prestígio da rebeldia, na exploração de tudo aquilo que contrarie os novos usos regulamentados. Não se trata tanto, entre estes, de combater o Mal, mas de reivindicar um certo direito à veracidade expressiva, uma veracidade expressiva que só se conquistaria com o auxílio de uma linguagem que furasse as malhas da correcção maioritária.

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Confesso que qualquer destas posições me parece um bom bocado absurda. Por um lado, as proibições sabem em princípio mal e ter por elas um amor desmedido não é nunca bom sinal. E, além disso, mergulham os discursos numa atmosfera rarefeita que pouco nos deixa respirar a realidade. A linguagem é uma coisa que se mexe e procurar imobilizá-la e regulá-la muito certinha é anular aquilo, a tal mobilidade, que lhe permite manter um certo contacto com a realidade a que se refere. Para não falar do ridículo imbatível de certos aspectos do exercício. Por outro lado, ver na regulamentação da linguagem e na abundância de proibições que ela acarreta a manifestação de uma intolerável hipocrisia dos costumes é esquecer que a hipocrisia possui um valor civilizacional efectivo. Se não usássemos todos umas bonitas máscaras bem afiveladas ao rosto, o que se veria não seria certamente nada de bom. E o uso repetido da máscara, como alguém lembrou, pode até fazer com que ela se nos cole e evite duradouramente a erupção de sentimentos pouco lindos de ver.

O erro nisto tudo reside numa insuficiente consideração da distância que medeia entre a palavra e a intenção de quem a usa. Há certamente palavras que, pela sua história própria, revelam inequivocamente a intenção de quem as profere. Mas a maioria delas não o faz. A língua colocou-as à nossa disposição e a intenção que preside ao seu uso só pode ser avaliada, interpretada, em função de um vasto número de condições. Sem atenção a essas condições, a imputação de intenções releva de uma violência autoritária inaceitável. Mais. A crença num valor sistematicamente unívoco das palavras tem algo de uma crença mágica. É como se as palavras fossem coisas dotadas de poderes objectivamente maléficos ou, alternativamente, benéficos, opressores ou libertadores, uma crença que muita má poesia não parou nunca de aplicadamente demonstrar.

Mas elas não são nada disso, é claro. O valor das palavras, bem como a intenção de quem se serve delas, varia de contexto para contexto. Uma anedota racista, por exemplo, tem um significado inteiramente distinto se contada em relativa intimidade ou em grande público. No primeiro caso, esperamos que quem nos ouve saiba medir a nossa distância para com os termos que utilizamos. No segundo, a presunção arrisca-se a ser demasiado ousada. O humor, de resto, coloca problemas muito curiosos, porque, pela sua natureza, é quase invariavelmente discriminatório.

Moral da história? Alguma hipocrisia deve ser preservada, mas, ao mesmo tempo, deve ser acompanhada do conhecimento da distância entre a palavra e a intenção. De outro modo, caímos na micrologia que nos faz perder o sentido da distinção entre o que é significativo e o que não o é. Se tudo é significativo, nada o é. E é por aí que andamos a cair.