A utilização de leitores de sensibilidade, os perdigueiros da linguagem em busca de estereótipos e termos sexistas, racistas, idadistas, etc., pressupõe neles uma excelente opinião sobre si mesmos e uma muito má opinião relativamente aos outros. Para celebrar e promover a inclusividade e a diversidade, não há como cavar um abismo entre os que sabem e os que não sabem, entre os moralmente superiores e os moralmente inferiores, entre os artisticamente sofisticados, que se movem à vontade na esfera estética, e aqueles que, rudes e estranhos às Musas, confundem a arte com a vida. De um lado, os que se expõem conscientemente à malignidade das linguagens históricas, porém, senhores de si, não cedem ao canto das sereias, navegam nas letras como Ulisses nas ondas, amarrados ao mastro, mas, soberanos, é por um acto de vontade própria que se vinculam. Ao contrário do que sucede na epopeia homérica, não temem nenhum poder que lhes saia ao caminho, bastam-se a si mesmos na sua solidão sacrificial. Do outro lado, seres débeis, de vontade anémica e falhos de discernimento, que, carentes de protecção e por um acaso feliz, têm naqueles cuidadores de imaculado desvelo.

Com base nessa cisão, a nova classe de leitores – pelos vistos não se anojam de uma tal designação para o que fazem – levam a cabo o expurgo e a reescrita dos livros, dito sem rebuço, a destruição dos livros e, por decorrência, dos autores, em defesa de todas as minorias incapazes de serem mais do que aquilo que são. Mas, mais grave, ao operarem uma redução das identidades ao presentismo mais raso, subtraem-lhes os meios de se auto-compreenderem historicamente; o presente pontual, sem um antes nem um depois, não chega sequer a ser uma identidade. A ideologia da vulnerabilidade é igualmente cega para um facto elementar: roubar o sofrimento a alguém é roubar-lhe o seu núcleo mais interior, dado que a negatividade da experiência é a condição originária da consciência de si e do progresso, tanto técnico como moral. Não é, claro está, a única condição, longe disso, mas é a que cala mais fundo, como o comprovam os fenómenos de inibições duradouras, ou mesmo nunca superadas, que se tornam, em casos agudos, patológicas.

Além disso, os cavaleiros desta nova fé, vulpinos, procedem a uma homogeneização que nada autoriza e que é, aliás, contraproducente relativamente aos fins proclamados. Esbatem a diferença entre a literatura e a vida, entre o leitor, ou espectador, que se confronta com uma obra que o interpela, ou pode interpelar – mas quanto a isso, e às respectivas modalidades, cada qual é o seu único juiz – e os atritos e as colisões da vida em comum, como se a manutenção da ordem pública se aplicasse à criação artística. Por outro lado, a imunização contra o sofrimento literário seria meio caminho andado para diminuir a tolerância ao sofrimento na vida real, uma vez que impediria o exercício imaginário das suas variações, e, com este, da maneira de lidar com ele e de o superar. Os fracos ficarão mais fracos. E mais necessidade terão dos fortes protectores. Um arrevesado modo que os leitores de sensibilidade encontraram para perpetuar o seu poder. Se se tiver em conta que, segundo o modelo hermenêutico, o texto é um tu, o caso muda de figura e as feições tirânicas fixam-se sem margem para ambiguidades.

Particularmente insidiosa, é a versão em tonalidade menor deste argumentário, que, uma e outra vez, recorre à contextualização. Uma ordem de ideias que padece de vício redibitório, mais não fazendo do que converter o leitor de sensibilidade no leitor de contextualização, não resolvendo nenhum dos problemas. Pelo contrário, agrava-os. Em primeiro lugar, não há unanimidade em torno de qualquer contextualização – por definição: uma vez que um contexto não apresenta contornos fixos –, sendo por isso necessário contextualizar a contextualização e assim sucessivamente. Em segundo lugar, a aparência de neutralidade por institucionalização de nível superior, pretensamente au dessus de la mêlée, confere-lhe uma autoridade injustificada que rapidamente revela a sua inanidade. Se dúvidas houvesse, as polémicas à volta dos fact-checkers dissipá-las-iam; neste caso, uma tal institucionalização tem como efeito secundário desvalorizar o jornalismo e justificar o seu partidarismo sem constrangimentos.

As consequências mais gravosas residem, no entanto, na aplicação de critérios protectores, nos moldes preconizados, à literatura infanto-juvenil. Na idade mais viva, na idade de maior plasticidade, onde a diversidade de situações desempenha a mais importante das funções, prevenindo fixações e petrificações precoces; onde a percepção externa, os estímulos internos e a actividade como síntese do conjunto constituem um contínuo de metamorfoses de figuras, papéis e valores; onde o jogo e o pôr-se à prova dão a medida do mundo e dos outros, o isolamento das crianças impede a formação de um juízo autónomo. Não há estrada real para a maturidade, que, nunca é demais recordar Freud, é a capacidade de suportar a infelicidade, senão o livre exercício das capacidades próprias. Os livros normalizados, sem relevo, são desprovidos do carácter aventuroso de toda a leitura: nela as crianças expõem-se a perigos e voltam a casa com feridas e cicatrizes, mas alargaram os horizontes. É isso que faz o sentido das histórias. Os leitores de sensibilização dão mostras de muito pouca sensibilidade, a anestesia estética que querem administrar, invertendo a ordem do tempo e das coisas, afivela uma máscara mortuária rígida sobre cera mole: le mort saisit le vif.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR