O receio expresso por James Davison Hunter de que as culture wars se transformassem em shooting wars pareceu ter sido justificado no dia 6 de janeiro, quando os apoiantes de Donald Trump invadiram o Capitólio com o objetivo de reverter o resultado das eleições presidenciais de 2020. Não sendo inédito, esse motim fez dissipar todas as dúvidas quanto à mobilização política que as lutas pela hegemonia cultural têm promovido na última década nos Estados Unidos. Em resposta à frente académica da New Left, ao ativismo dos media norte-americanos, às milícias fiscalizadoras das redes sociais e às agitações dos Antifas e Black Lives Matter, uma nova direita – uma direita alternativa – começou a afirmar-se.

Esta direita alternativa pensada para a disputa cultural, conhecida como alt-right, nasce e cresce nas plataformas mais abertas da internet e estará na origem do QAnon como braço armado virtual de Donald Trump. Ligada à controversa figura de Richard B. Spencer, traduz um conjunto de valores que podemos designar por nativismo e que remetem para uma identidade cristã branca que representaria a superioridade da civilização ocidental.

Estamos, neste sentido, perante um movimento radical específico, que não convoca os valores tradicionalmente associados ao partido republicano ou ao conservadorismo liberal. Trata-se antes, e em perfeita reprodução do movimento radical à esquerda, de um movimento identitário. E esse aspeto é fundamental para a compreensão das culture wars: na medida em que a identidade depende de fatores culturais, é o foco identitário que determina o facto de estarmos perante lutas culturais e não meramente disputas políticas, passíveis de serem dissolvidas no procedimento democrático normal. Aqui, a posição contrária é entendida como uma ameaça à existência e a mobilização passa a ser vista como luta pelo direito à sobrevivência.

Um veículo de ação privilegiado para a alt-right foi a plataforma de comunicação Breitbart News, sob a gestão de Steve Bannon, diretor executivo da campanha presidencial de Trump em 2016 e chief strategist da Casa Branca em 2017. Bannon tem desempenhado um papel especialmente relevante na afirmação desta direita identitária: em 2017, criou uma organização política chamada The Movement, para integrar os partidos e movimentos políticos à direita. The Movement atraiu a atenção de vários movimentos políticos na Europa e a adesão dos principais líderes políticos europeus que podemos designar como identitários: Marine Le Pen, em França, Matteo Salvini, em Itália, Viktor Orbán, na Hungria. O objetivo passa por ultrapassar as limitações de uma narrativa nacionalista, unindo esforços na guerra de posição gramsciana. Como afirmou Viktor Orbán, em entrevista a Jaime Nogueira Pinto: “A cooperação para a direita é mais difícil do que para a esquerda, porque somos nacionalistas. Mas se quisermos sobreviver, é a única maneira. Temos de nos juntar, de encontrar um denominador comum.”

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Para compreendermos as possibilidades desse denominador comum, temos de regressar a Hunter: no seu livro de 1991, o sociólogo norte-americano recupera o sentido inicial de Kulturkampf ao analisar as lutas culturais superando a dicotomia tradicional entre republicanos e democratas. O livro tenta compreender a coligação entre fundamentalistas cristãos, judeus ortodoxos e católicos conservadores, tidos antes como adversários, mas que juntam esforços contra os ventos progressistas. Para Hunter, tornou-se claro que a disputa de valores que estava a ocorrer revelava a oposição entre os valores tradicionais, necessariamente ligados à religião, e os novos valores progressistas que podem ser vistos como aprofundamento da sociedade laica que se iniciou no século XIX.

Esta dimensão religiosa permite compreender o lugar central que ocupa a questão do aborto nos países onde as batalhas culturais são mais aguerridas (pensemos nos Estados Unidos e no Brasil). Os progressistas consideram que o aborto medicamente assistido corresponde a um avanço civilizacional, que deve mesmo ser retirado da esfera da liberdade de consciência, como o Parlamento Europeu recentemente afirmou, e entendido como direito humano. A reação a esta agenda progressista tem sido assumida pelo bloco conservador, o que justifica o apoio dos movimentos religiosos fundamentalistas a figuras políticas como Trump ou Jair Bolsonaro (pensemos na importância da mobilização dos evangélicos). Esse apoio não traduz, necessariamente, uma adesão genuína a essas figuras, mas ao facto de verem nelas uma possibilidade de resistência (e até reversão) da agenda progressista. No que à Europa diz respeito, podemos pensar na lei sobre o aborto recentemente aprovada na Polónia, que nos últimos anos ingressou no grupo de países liderados por governos de direita mais radical ou conservadora.

O aspeto religioso não pode ser, então, menosprezado. Pelo contrário: ele assume um lugar particularmente relevante, na medida em que é alvo de disputa pelos dois blocos: se, à esquerda, a religião é entendida como o principal inimigo a abater, à direita, é percecionada como fonte dos valores civilizacionais consagrados pelo Estado-nação. Contra a perspetiva antirreligiosa e internacionalista dos progressistas e a perspetiva multiculturalista e relativista da esquerda radical, a luta cultural é pensada, à direita, a partir dos valores da cristandade como a nossa referência civilizacional.

Esta reivindicação das raízes cristãs permite ainda uma clarificação importante: apesar de podermos encontrar nesta direita identitária muitas influências da Nouvelle Droite (nomeadamente, a estratégia gramsciana), esta nova direita não coincide com o movimento identitário que resulta do GRECE. De facto, as relações entre a antiga Nova Direita e os valores da cristandade são complexas, e os seus autores tendem a reclamar um pensamento pagão. Pelo contrário, esta nova-Nova Direita mostra que há espaço político para uma identidade política cristã, como nota Mark Lilla, no seu artigo sobre Marion Maréchal-Le Pen.

É, então, no cruzamento entre Estado-nação e valores da cristandade que se tem afirmado a resistência ao discurso da esquerda radical, que conseguiu elevar a sua agenda progressista ao patamar da Normalidade, do Bem e do Correto. E perante a normalização dessa agenda política concreta, o bloco conservador passou a juntar direita alternativa, direita radical, fundamentalistas religiosos de vários tipos, católicos não progressistas e simples conservadores e reacionários difusos no mesmo lado da luta. São grupos muito distintos e que enformam uma narrativa reativa, com todas as fragilidades ideológicas que tal acarreta, mas têm procurado mostrar que a agenda progressista imposta por uma vanguarda ativista não corresponde a toda a verdade política.