Benjamin Zander, maestro inglês de origem judia, é um músico prodigioso, mas é também um grande mestre e um fabuloso storyteller. Interpelam sempre as pequenas histórias que conta nos diversos palcos onde faz eloquentes palestras, seja quando pretende ilustrar os seus argumentos ou sublinhar as suas convicções. Incrivelmente carismático, tem o dom da palavra e é capaz de captar a atenção de audiências massivas durante horas. Os seus alunos conhecem bem este seu talento, aliás.

Uma das suas conferências mais ouvidas de sempre foi feita no TED, em 2008, e tem como ponto de partida, e de chegada, o sugestivo conceito “olhos a brilhar”. A talk tem como título “The transformative Power of Classical Music”, mas bem poderia ser classificada como Classical music with shinning eyes. Aconselho-a vivamente, especialmente a quem acha que nem sequer tem ouvido para a música. Ou então aos que, como eu, se sentem particularmente ignorantes neste campo.

Ben Zander, como também é conhecido, é um verdadeiro sábio, sempre pronto a partilhar a sua sabedoria com entusiasmo e palavras simples. Acessível, chega aos outros pelo humor e pela inteligência, mas também pelas histórias que conta, pela autenticidade e pela capacidade de contagiar. Mais do que inspirar, também faz agir. Convoca-nos a um conhecimento profundo da música e do seu impacto, leva-nos a querer mais, a ouvir melhor, a explorar universos que pensávamos serem exclusivos de uma elite de músicos e melómanos, fazendo-nos sentir em casa por “estarmos” com ele.

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Benjamin nasceu em Inglaterra, em 1939, filho de judeus oriundos de Berlim que foram obrigados a exilar-se em 1937 para escapar à perseguição nazi. Walter, o pai, era advogado e músico. Perdeu grande parte da sua família em Auschwitz, mas nunca perdeu a capacidade de acreditar na superação própria e dos outros. Ao chegar a Inglaterra, viveu com a sua mulher num campo de refugiados, onde provou ser muito criativo e positivo. Apostado em encontrar formas de sobreviver à adversidade e à perda de absolutamente tudo o que até ali lhes tinha pertencido, não desanimou e chegou mesmo a fundar uma “espécie de universidade” no campo de refugiados.

Como escreve Ricardo Moreira de Carvalho, gestor de projetos de inovação e tradutor de palestras TED, no seu blog pessoal, “enquanto muitos desesperavam e aguardavam isoladamente o fim da situação, Walter percebeu que existiam muitas pessoas cultas a viver no mesmo espaço e que podiam transmitir os seus conhecimentos aos outros. Assim, organizou uma espécie de universidade, com várias “cadeiras”, consoante o conhecimento de cada um.

Walter Zander teve quatro filhos e foi uma influência iluminante para todos. Benjamin, o mais novo, já por várias vezes falou publicamente do seu amor pelo pai e de tudo o que aprendeu com ele. Chegou a contar um pequeno episódio, passado no dia imediatamente a seguir à morte do pai, quando atravessava os corredores do New England Conservatory, onde dava aulas, e se cruzou com uma aluna.

– Contei-lhe que o meu pai tinha morrido e, no mesmo instante, ela ficou com lágrimas nos olhos. E eu perguntei porque é que chorava, se nem sequer o tinha conhecido, mas ela respondeu: todos o conhecemos através de si!

Na verdade, conclui Ben, “todos os que me conhecem, conhecem o meu pai. A sua sabedoria, as suas histórias, o seu humor, as suas anedotas são parte de mim, mas também já são parte dos meus alunos”.

Se hoje recordo tudo isto acerca de Ben Zander, é porque há uma história que ele conta e me atravessa de forma especial, sobretudo por estarmos a inaugurar um tempo novo, um ano novinho em folha.

– Uma velha senhora, que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, contou-me que foi deportada quando tinha 15 anos. Seguiu no comboio com o irmão, de 8, que ia descalço. Os pais tinham sido levados antes e eles foram depois, sozinhos entre a multidão que encaixavam em cada vagão. Quando olhou para os pés do irmão e o viu descalço, ralhou-lhe no tom em que habitualmente as irmãs mais velhas ralham com os mais novos. De forma áspera disse-lhe que ele era sempre a mesma coisa, que nunca sabia juntar o que era seu.

Benjamin Zander conta que esta senhora lhe confessou que estas foram as últimas palavras que disse ao seu irmão mais novo. Pouco depois foram separados e nunca mais o voltou a ver. Ela foi a única sobrevivente e quando foi libertada do campo de concentração disse:

– Saí com vida e com vontade de pensar sempre bem nas palavras que digo aos outros. Passei a ter muito cuidado porque nunca sei se essas não serão as minhas últimas palavras para essa pessoa.

A atitude de uma mulher que viveu vários anos confinada em condições extremamente dramáticas, severamente agravadas pela agressividade com que os presos eram tratados nos campos de concentração, faz-me querer escrever esta primeira crónica do ano. Deste ano, pelo qual todos esperávamos ansiosamente. Este 2021, que desejamos que nos corra bem a todos, mas que depende muito da forma como cada um usa o poder, a influência, a arte, a ciência e a experiência. E as palavras.