Faz um ano que nos fechámos em casa para que nos protegêssemos de uma pandemia. De então para cá ouvi muitas histórias (que agora se apelidam de narrativas) das quais a mais cândida foi a da falência do liberalismo. Desde o dia 9 de Novembro de 1989 que ouço falar da falência do liberalismo (vá-se lá saber porquê). Como qualquer narrativa esta teve vários capítulos. Um dos primeiros foi que as empresas impedidas de abrir tiveram dificuldades porque eram mal geridas. De imediato se apontou o dedo a esses empresários que (imagine-se!) não tinham um pé-de-meia que lhes permitisse aguentar meses sem facturar. Algo incompreensível principalmente num país cujo Estado se equilibra sem a injecção permanente de fundos vindos do estrangeiro que os nossos filhos e muitos dos Portugueses que ainda nem nasceram vão ter de pagar. Ficámos a saber que uma empresa falir (mesmo porque obrigada por força da lei a fechar) é um fracasso, mas suportar custos que outros irão pagar é de louvar.

Saliento que não critico o papel que o Estado deve ter na crise económica causada pela pandemia e pelo modo como a esta se respondeu. Sublinho apenas a discrepância com que se encara a realidade das empresas com a do Estado. A insensibilidade que se revelou neste ponto em concreto.

Outra narrativa centrou-se nos EUA, um país selvagem, como se sabe. Certo, certo era que a Covid-19 ia pôr os EUA de joelhos. As mortes eram tantas que a cidade de Nova Iorque não tinha condições para funerais dignos. Em Portugal, pelo contrário, éramos os melhores do mundo. Independentemente dessa verdade, Joe Biden declarou na última quinta-feira que por volta de 1 de Maio todos os adultos norte-americanos terão acesso à vacina. Finda a pandemia (que os EUA esperam declarar no dia 4 de Julho) será tempo de fazer contas. Por enquanto, os EUA somam cerca de 90 mil casos por milhão de habitantes, contra os 79 mil por milhão em Portugal. Quanto a mortes, situam-se por lá entre os 1644 por milhão de habitantes enquanto em Portugal se ficam nos 1638 por um milhão. Diz-se que se contarmos muitas vezes uma mentira esta passa a ser verdade e este caso parece confirmá-lo.

Se o que a presente pandemia demonstra é que vivemos num país que escuta demasiado aquilo em que quer acreditar. Que se fecharmos os olhos ao que se passa lá fora seremos virtuosos. Se não houver mais ninguém arrisco-me a acrescentar até que somos mesmo os melhores do mundo. Orgulhosamente sós uma vez, orgulhosamente sós para sempre.

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Outra narrativa que me marcou particularmente foi a relativa a Israel. É interessante como sendo Portugal o melhor, normalmente surge algo, naturalmente injusto, que nos trama. Ou é o capitalismo, ou a austeridade dos alemães que não sabem sorrir, ou os contactos que Israel (um país de judeus) tem entre as farmacêuticas. Não interessa que Israel beneficie de um sistema de saúde que conta com quatro subsistemas que, sendo privados, têm uma finalidade pública. Não interessa que esses subsistemas privados de saúde concorram uns com os outros num esforço gigantesco para serem melhores e mais eficientes. Não interessa que o caso de Israel evidencie como a livre concorrência na saúde pode beneficiar a população. Não interessa que o sistema de saúde público israelita esteja altamente informatizado. O que acaba por interessar é que Israel não vacinou os Palestinianos.

Outra história reveladora dos tempos que vivemos é a do sucesso chinês na erradicação da pandemia. Apesar dos números revelados por um Estado autoritário serem de levantar o sobrolho, o que a China terá conseguido foi à custa de um sistema de vigilância, a par com a privação básica das mais básicas das liberdades. Apartamentos selados com pessoas lá dentro, jornalistas presos, uma vigilância permanente com vista a saber quem sai e para onde vai, com quem fala, conversa, onde se detém, para onde olha e o que vê, ficar a par do que se lê e de quem se escuta. Com o pretexto da pandemia a vida dos Chineses é seguida ao pormenor pelas autoridades. Ora, isto não é sucesso. Não o é para os estudantes Chineses que protestam nas universidades nem o é para nós, ocidentais, que não toleraríamos viver daquela forma.

A última mentira para que quero alertar é a de que estamos todos no mesmo barco. Não estamos. Quando apresentado o plano de vacinação foi dada prioridade aos grupos de risco. Entre estes incluíam-se os profissionais de saúde, forças armas e de segurança, profissionais e residentes em lares de idosos, pessoas com mais de 50 anos com determinadas patologias e, por fim, aqueles com mais de 80 anos de idade. Entretanto, os deputados (com excepção dos que tiveram a decência de recusar o tratamento preferencial) entraram na equação e já se prevê o mesmo para os professores, mesmo que tenham idade para que não sejam de risco. Há dias Sandra Clemente escreveu sobre este  processo de vacinação determinado pelo poder dos lobbies. Ainda nesta última semana uma advogada foi contactada pelo tribunal que a informou do adiamento do julgamento porque a juíza (mais nova) fora vacinada e não se sentia em condições para presidir à audiência. Ao mesmo tempo que há cartórios abertos, as conservatórias não agendam casamentos, mesmo que sem convidados, até 15 de Março. A razão é a segurança.

É de salientar que, relativamente às alterações nos grupos prioritários, estas foram decididas num momento em que o número de vacinas disponíveis é menor que o esperado. Talvez a razão para a mudança se deva precisamente a isso. Apesar de a narrativa ser a de que nos encontramos todos no mesmo barco e que a prioridade na vacinação deve ter em conta a idade, a verdade é que este tem muitos furos. É tal qual o Titanic quando foi ao fundo. Uns sobreviveram e outros morreram. Bem sabemos qual foi a sorte dos honrados.