Qualquer que seja o assunto sobre o qual uma pessoa se proponha ler alguma coisa, da botânica à filatelia, é imensa a probabilidade de encontrar um livro ou outro com o título “A invenção de…” ou “A construção social de…”. Estes títulos, sobretudo o segundo, mostram à evidência como o discurso sociológico, com o seu modo próprio de ver as coisas, progrediu no mundo do espírito. Não há objecto imaginável que não seja susceptível de ser apresentado como o produto de uma “construção social”. Isto não é um queixume, que seria disparatado: é uma constatação.

Para se perceber as origens desta atitude contemporânea nada há de mais ilustrativo do que o estudo de uma controvérsia que, entre 1903 e 1908, abalou o mundo intelectual francês e que opôs o historiador Charles Seignobos e um jovem sociólogo discípulo da Émile Durkheim, François Simiand, controvérsia na qual vieram a participar várias outras personalidades, entre as quais o próprio Durkheim. Ela lidava ostensivamente com o estatuto das chamadas “ciências sociais” e com o método que elas deviam adoptar para progredirem no sentido de uma maior cientificidade. Mas o contexto implicava também outros problemas de natureza diversa, nomeadamente o do estatuto profissional e universitário dos praticantes da história e da sociologia. O dos historiadores encontrava-se bem estabelecido em França desde a segunda metade do século XIX, o dos sociólogos era, no mínimo, precário. Toda e qualquer controvérsia é, num certo sentido, impura: faz intervir no seu seio elementos que são extrínsecos ao tema que directamente a suscita. Basta pensar no actual debate sobre o “aquecimento global”.

A controvérsia de 1903-1908 é de uma riqueza extraordinária e, como todas as controvérsias cujo núcleo central é filosófico, inconclusiva. As controvérsias filosóficas, contrariamente às controvérsias propriamente científicas, não se encaminham, pela própria lógica do seu objecto, em direcção a um acordo, alicerçado em provas, das posições em confronto, por mais provisório e revisível que tal acordo seja. As divergências tendem até a acentuar-se e as controvérsias a repetirem-se. Não é difícil encontrar hoje em dia autores que representam, embora de um modo diverso, as posições de Seignobos e Simiand. Tal como a chamada “filosofia da mente” contemporânea ecoa os profundos debates do século XVII, embora num contexto muito diferente e com uma linguagem que indiscutivelmente lhe é própria.

No fundo, Simiand e Seignobos representam duas concepções das disciplinas que respectivamente apelam às filosofias de Platão e de Aristóteles. Tal como Platão supunha haver uma ciência única, a dialéctica, que era suposta ser idêntica em todas as áreas do saber, Simiand e os restantes durkheimianos acreditavam que nada de essencial deveria, do ponto de vista metodológico, separar as ciências sociais das ciências físicas e que a sociologia, muito mais do que a história, se encontrava numa posição privilegiada para levar a cabo essa unificação do saber: há um patente imperialismo sociológico por detrás da máquina de guerra durkheimiana. E tal como Aristóteles julgava que cada ciência funciona com base em princípios que lhe são próprios e que não são exportáveis para as outras ciências, cada uma delas possuindo uma exactidão distinta das outras (a física, por exemplo, possui uma exactidão distinta da da ética), e que é sinal de ignorância procurar uma idêntica exactidão em tudo, também Seignobos acreditava que, em virtude da natureza distinta dos seus objectos, as ciências da natureza e as ciências sociais não se poderiam regular pelos mesmos princípios.

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Não é por isso de estranhar que Simiand se lance numa feroz condenação daquilo que ele vê como os ídolos da tribo dos historiadores: o político, o individual e o cronológico, além do “fetichismo do acontecimento”. Caberia à sociologia arrasar esses ídolos e pôr as ciências sociais (inclusive a história, de algum modo anexada pela sociologia) numa situação de igualdade com as ciências físicas. E também não é surpreendente que Seignobos, com argumentos de uma grande finura conceptual, se tenha oposto a tal projecto e insistido na especificidade do conhecimento histórico e nos constrangimentos irredutíveis que afectam o conhecimento da sociedade.

Sem querer de modo algum pôr em causa os grandes espíritos que foram Durkheim e Marcel Mauss ou sequer o brilho de Simiand, uma pessoa pode-se lamentar que, durante muitas décadas, a historiografia francesa, mais sob a forma de uma apropriação do que de uma subordinação, se tenha colocado do lado dos durkheimianos e tenha virado as costas a Seignobos. Com efeito, a chamada escola dos Annales, desde Marc Bloch e Lucien Febvre, e ainda mais com Fernand Braudel (e, nas margens dos Annales, Ernest Labrousse),  fez sua a crítica dos ídolos da tribo dos historiadores: o político, o individual e o cronológico, e condenou sem apelo o “fetichismo do acontecimento”, puro efeito de superfície que caberia à história colocar no seu devido e recuado lugar, como Braudel o havia feito no seu livro sobre o Mediterrâneo. Fiz o meu doutoramento (em filosofia) no lugar por excelência dos Annales, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durante três anos, de 1991 a 1993, frequentei o seminário de historiografia de François Hartog. Ainda me lembro da palpável emoção que o tema do “retorno do acontecimento” suscitava no contexto dessa tradição.

Mesmo que em história, nas últimas décadas, o peso do discurso sociológico tenha recuado, a verdade é que (para utilizar um conceito ele mesmo sociológico) os seus efeitos perversos se sentem um pouco por todo o lado. Permito-me sublinhar que esta constatação não equivale a uma condenação da sociologia, o que seria no mínimo tonto. Não se conta o número de sociólogos que iluminaram profundamente a natureza da sociedade, e bastaria citar, além de Durkheim, Weber, Pareto, Elias. Trata-se apenas de mencionar as formas abastardadas a que a maneira de pensar sociológica dá lugar. Dois exemplos.

O primeiro encontra-se naquela história do sociólogo que vê, no passeio do outro lado da rua, um jovem a dar uma coça num velhote. Logo atravessa a rua a correr. Para defender o velhote? Não. Para inquirir junto do jovem que tipo de condições o levam a, forçado pela sociedade, agir de forma violenta. É o tipo de maneira de pensar – o reflexo sociológico de base – que quase por inteiro constitui a essência do jornalismo contemporâneo, uma espécie de condição transcendental do pensamento jornalístico.

O segundo tem a ver com a linguagem. A sociologia, sob a sua forma mais degradada, conduziu a um dos tipos de prosa mais rebarbativos que a humanidade jamais criou. Todas as disciplinas – e a filosofia está longe de ser uma excepção, antes pelo contrário – produzem no seu seio caricaturas delas mesmas. Mas a sociologia consegue caprichar, mesmo num mercado formidavelmente competitivo. Imaginemos um produto típico: A actancialidade do actor actua actuando na acção actuante originária que o acto actualiza – uma actualização actuada – através do par actor-actuado, no qual a actancialidade do actor é reactualizada pela co-actancialidade do actuado numa actuação recíproca e reciprocamente actuante de grau superior, quer dizer na co-actância (uma co-actancialidade mais articulada, não meramente coactada) que resulta, para a actividade sociológica, num acto verdadeiramente livre, actualizado e incoactado. Como é bom de ver, a frase poderia prosseguir indefinidamente, dispensando, de resto, a utilização de qualquer ponto final. Encontram-se fragmentos dessa frase infinita num sem número de textos.

Mas, voltando aos exercícios legítimos do espírito, não há como ler a controvérsia entre Seignobos e Simiand. Um historiador espanhol, David J. Domínguez, reuniu em 2018, junto com uma extensa apresentação, as peças-chave do debate: Clío en disputa. El debate epistemológico entre sociólogos e historiadores (1903-1908). Aconselho vivamente a leitura. Até porque as questões se repetem.