Gosto demasiado de mim próprio para me sujeitar às agonias do consumo de televisão generalista, mas tal como acontece com as agruras da morte e com os relambórios indigentes da música pop, só se lhe escapa até um dia, e eis que numa inesperada manhã me vi no ingrato papel de telespectador. Perante a cruel mortificação cognitiva, só não se me desertou o tino porque encontrei novidade no curioso teatrinho que se desenrolava no ecrã.

A manobra, que afinal é número velho, começa quando um dos apresentadores desses programas de variedades (também conhecidos por “sumidouros do tempo que nos fará falta no fim”) se desloca todo sorrisos a uma banquinha de vendilhão onde é esperado por um qualquer respeitável cavalheiro para em conjunto co-venderem o produto do dia, geralmente mesinhas e pirlimpimpins. Ouve-se então «são dois comprimidos, não é sr. Fulano?», «tenho uma amiga que experimentou e dorme muito melhor», e outras afirmações que soam tão a genuíno como as polkas madeirenses.

Intrigado com a naturalidade com que toda aquela gente vendia e se vendia sem eu chegar a perceber onde estava a menção a publicidade, decidi, na mais abnegada das abnegações, estar atento na próxima. E, “com grande sacrifício pessoal”, lá acabei por reparar que, pelo menos no caso da RTP1, a entrada dos actores em palco é precedida por um ecrã dizendo “Telepromoção”, que não é apresentado por mais de meio segundo, e que durante a farsa fica pendurado um “TP” no topo direito do ecrã.

Ainda mais caricato foi testemunhar na Praça da Alegria (RTP1, 4 de Outubro, 13h50) a apresentação da portuguesíssima linha Texana de botas, chapéus e outros indispensáveis de um tal Zé Amaro, tendo eu novamente procurado a indicação de publicidade sem lograr descobri-la, certamente por ser falho de perspicácias.

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O leitor arguto dirá com muita razão que não precisa de pistas para reconhecer a publicidade a léguas, venha ela com que penteado vier — mas o público-alvo desses programas é outro, não é?

Que diz a lei

Aplicam-se o veterano Decreto-Lei n.º 330/90 (“Código da Publicidade”) e a Lei n.º 27/2007 (“Lei da televisão”), a que se somam, para manter as coisas interessantes, várias alterações por via de outros diplomas (felizmente que o Diário da República Electrónico permite ver a legislação consolidada).

A publicidade é definida como «qualquer forma de comunicação feita por entidades de natureza pública ou privada» (Artigo 3.º-1 do DL 330/90) e estabelece que «tem de ser inequivocamente identificada como tal» (Artigo 8.º-1 do mesmo decreto). Até aqui mero bom senso codificado em lei.

Mas a parada sobe com a Lei da Televisão, onde o profícuo Artigo 2.º define em escassas 1871 palavras, e misturados com muitas outras coisas, 9 (nove!) sabores daquilo que os simples conhecem simplesmente como “publicidade”. A saber: “Ajuda à produção”, “Autopromoção”, “Colocação de produto”, “Comunicação comercial audiovisual”, “Comunicação comercial audiovisual virtual”, “Patrocínio”, “Publicidade televisiva”, “Telepromoção” e a “Televenda”.

Cada um destes conceitos, tão sofisticados e tão indispensáveis que nem sei como se dobrou o Cabo da Boa Esperança sem eles, tem de ser distinguido da restante programação, mas a lei não define nem como nem com que veemência; por isso, as televisões aproveitaram a deixa em 2012 para se entenderem na sinalética e assim vieram ao mundo termos tão cristalinos como “PAT”, “AP”, “TP”, “PV”, e outros.

Todo este intrincado labirinto é para benefício de você lá em casa, pois não há telespectador em Portugal que não saiba de cor que PAT é o sinal para “Patrocínio”, AP para “Ajuda à produção”, TP para “Telepromoção”, PV para “Programa com publicidade virtual”, etc. Não é como se os telespectadores tivessem mais que fazer!

Os cínicos poderão querer substituir toda esta inspirada exuberância por um previsível e insosso “PUB”, mas isso seria privar cor e brilho a este mundo.

A etiqueta na arte de devorar o cardume

Os incontestados comensais a esta mesa são mesmo as televisões, que vendem publicidade a preços indexados ao grau de engano. A haver vantagem para o telespectador essa reside num plano tão abstracto que só o Legislador a lobriga.

Há ainda o notável paradoxo de a lei restringir as telepromoções aos «programas de entretenimento ligeiro» (40º.C-1 da Lei 27/2007), justamente os que têm audiência constituída maioritariamente por pessoas idosas, doentes, solitárias, e portanto mais propensas a cair nos teatrinhos montados para as enganar, ou não fossem os habituais apresentadores também protagonistas na encenação.

Afirmo que a grande maioria desse público-alvo não entende que está a ser exposto a publicidade sonsa, assim como não desconfia de que aquele apresentador, sempre tão jovial e prestável, tanto ajuda a vender banha-da-cobra como pés-de-borboleta, em função do que lhe ordena Sua Excelência o euro.

E aquela coisa da ética?

É complicado. Por um lado andam a endrominar avózinhas; por outro, fazem-no a troco de muito dinheiro.

O alto patrocínio do Legislador a estas práticas rasteiras configuram um agravo de tal ordem que me remete para 1981, quando o presidente-actor Reagan preferiu o Mercado ao Estado para avalizar os conteúdos televisivos das crianças americanas.

Conluios como estes, firmados na meia-luz dos corredores do poder, onde sempre se diz trabalhar para o povo e sistematicamente se beneficia os grandes interesses à custa dele, foram parte do caminho que nos levou à descredibilização do Estado, da autoridade, e, por arrasto, do “outro” e da própria Ciência.

Em democracia, a ética dos poderes é uma amostragem da ética em sociedade e afigura-se que a nossa é talvez já mais ébria do que ética. Considere-se por exemplo a sondagem de 2009 da Católica que revelou que os portugueses viam José Sócrates como sendo o melhor líder à época, embora penalizando-o na rubrica “é uma pessoa séria e em quem se pode confiar”: para muitos a seriedade é apenas um extra.

Se o problema não são “eles” mas “nós”, a revolução não se faz de punho no ar nem de dedo em riste, mas sim “cá dentro”, onde custa mais. Mas onde houver um cidadão que muda há uma sociedade em mudança. E talvez não seja por acaso a rima com esperança.