É sempre um espectáculo curioso. Refiro-me ao facto de, em certas e determinadas circunstâncias, os media portugueses entrarem em regime de dupla nacionalidade. Desta vez foi com as eleições brasileiras. Era como se fossem as nossas. Mais. Como prova certa do nosso universalismo, eram ainda mais emocionantes do que as nossas. Porquê? Porque tudo estava, cosmicamente, em jogo, enquanto que nas nossas, comicamente, nada conta, mornas e tristes que são. Quem se interessa verdadeiramente por elas? Os políticos, certamente. E fora deles? Talvez uma ou outra pessoa preocupada. E a jornalista Anabela Neves, é claro.

Mas não se trata de uma dupla nacionalidade puramente platónica. É antes uma dupla nacionalidade que se entusiasma e participa, é parcial, toma partido. Quem tiver passado a noite eleitoral brasileira a ver televisões portuguesas não poderá ter deixado de pensar que se encontrava no Sambódromo da Marquês de Sapucaí entre a claque torcedora dos Caprichosos de Pilares, desejando o desaire dos Unidos do Jacarezinho. Com efeito, os jornalistas não disfarçavam em momento algum o seu entusiasmo pelos primeiros – que, aos seus olhos, unem – e a sua detestação pelos Unidos do Jacarezinho – que, pecado dos pecados, dividem. E os convidados ao comentário também partilhavam a doutrina, tal como os entrevistados nas ruas. Uma unanimidade tanto mais surpreendente quanto, na apreciação final, os votos puseram as duas escolas de samba quase empatadas, com ligeira vantagem para os Caprichosos de Pilares. Como encaixar neste contexto a misteriosa doutrina da união/divisão? E: porquê, assim, tal parcialidade?

A coisa foi-nos sendo explicada, no entanto. É que os Unidos do Jacarezinho, esses danados, não querem, no fundo, o samba. Detestam o samba. Abominam o samba. Querem acabar com o samba. Dito de outra maneira, e falando com o mais puro rigor académico: são fascistas. A natureza desse fascismo resulta clara das análises de alguns consagrados especialistas na matéria. Segundo um deles, o cortejo carnavalesco era um golpe de estado feito às claras, que dura desde há muito, inspirado no exemplo de Hitler. Objectivo: destruir o samba, substituindo-o pelo passo de ganso. Sinistras forças internacionais, representadas por não menos sinistros indivíduos, denodadamente militavam para que o fim do samba tivesse lugar e para tal financiavam os Unidos do Jacarezinho, dirigindo as operações a partir de um covil em São Paulo.

Será que a vitória dos Caprichosos terá posto fim a estes transparentes desígnios? Desenganem-se. A estratégia fascista, garante-nos o especialista em questão, vai apenas entrar numa nova fase. Será uma fase mais subterrânea, plena de ardis e conspirações, mobilizando todas as forças do crime disponíveis. Apenas uma solução se vislumbra no horizonte para impedir a cavalgada sem fim das forças que manobram por detrás dos Unidos do Jacarezinho. E qual é ela? Reconhecer plenamente um facto crucial: o voto não é o único factor que legitima a vitória de uma escola de samba sobre a outra. Para que a vitória seja justa é necessário ter em conta vários outros critérios, que cabe aos especialistas definir. E só tendo-os em conta se poderá designar o justo vencedor da competição.

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Chegados aqui, convém dizer uma coisa. Gosto muito do Brasil e dos brasileiros em geral. Chega-se lá e (como nos Estados Unidos) encontra-se uma genuína simpatia que quase por inteiro desapareceu da velha Europa. É tão estranho que a primeira reacção é de desconfiança – parece uma artimanha –, até que se bate com a mão na testa e dizemos para nós mesmos, envergonhados: “Que estúpido que sou! São mesmo simpáticos!”. Da segunda vez que lá fui, no longínquo ano de 2006, passei seis meses a dar aulas no Rio de Janeiro (digo “passei” porque seis meses é pouco para dizer “vivi”). Aproveitei para viajar por vários lugares do Brasil. Mas, por intensa que seja São Paulo ou maravilhosamente barrocas as cidades de Minas Gerais, por exemplo, foi o Rio que nunca mais me saiu da cabeça. Aquela cidade cuja configuração geral está constantemente a mudar consoante o lugar em que estamos – algo que Stefan Zweig notou bem no seu livro sobre o Brasil (aparentemente encomendado por Getúlio Vargas). Ao ponto de, regressado a Portugal, durante meses e meses ter tido regularmente quase-alucinações do Rio: imagens súbitas que me vinham ao espírito da beleza extraordinária daquela cidade.

Mais. São tantos os aspectos – incluo o académico – em que o Brasil é superior a Portugal que me irrita a linguagem de sambódromo que por cá se utiliza para descrever a vida de lá. Lula e Bolsonaro não são chefes de escolas de samba. Tratá-los assim, e adoptar o ponto de vista do torcedor de uma escola contra outra, como fizeram as nossas televisões, parece-me uma miserável manifestação de pseudo-superioridade que é, no fundo, uma involuntária confissão de inferioridade. Uma inferioridade que, como é fatal, traz consigo a estupidez pura e simples: dar de barato que metade da população de um país imenso é fascista e a outra constituída por doces anjos do Bem roça a oligofrenia.

Por razões diferentes, e algumas idênticas, Bolsonaro e Lula pareciam-me maus candidatos. Não simpatizo nem com o estilo de Bolsonaro nem com muitíssimo do que diz e pensa e não me esqueço que Lula – que achava extraordinariamente empático quando o via quase diariamente na televisão em 2006, mesmo quando já se “agilizavam” envelopes com dinheiro em todas as direcções – foi o candidato de uma força política constituída por grupos daquilo que, na óptima linguagem do Jornal de Notícias da minha juventude, se designava por “ardilosos amigos do alheio”.

Acontece, no entanto, que não sou brasileiro: sou português. Quer dizer: há toda uma distância que tenho, por respeito pelo outro, de manter nos meus juízos. Por alguma razão, lá terão sido aqueles dois. Os brasileiros sabê-lo-ão melhor do que eu. E essa obrigação de distância vê-se redobrada pelo facto de a democracia ter funcionado. E ter funcionado por si mesma, sem o recurso àqueles misteriosos critérios suplementares propostos, na sua linguagem de sambódromo em versão académica, pelo teórico da conspiração fascista acima referido. Ou melhor: ter funcionado exactamente por esses critérios, que sugerem uma revolução anti-democrática – em tudo idêntica àquela que certos apoiantes mais irados de Bolsonaro agora reclamam, só que de sinal contrário –, não terem sido utilizados. É que nem mesmo no sambódromo o devem ser.

PS. As televisões (todas, mais uma vez) descobriram depois das eleições uma inesperada detestação pelas manifestações, quando as costumam acarinhar se vêm dos lugares que julgam certos (mesmo quando recusam resultados eleitorais), que são quase todas aquelas que mostram. É o que se chama no Brasil uma “virada”. Mas talvez seja porque elas, pelo menos até agora, foram pacíficas e não partiram montras e incendiaram carros, como aquelas de que costumam gostar. Ou será porque estas “dividem” e as outras “unem”?