1 Quando Cavaco Silva escreve e fala, o país ouve atentamente para de seguida dar início a um debate intenso e acalorado para elogiar ou criticar. Essa é a única prova necessária para atestar o forte poder e influência política que o ex-primeiro-ministro continua a deter.

Cavaco foi o primeiro-ministro que mais transformou Portugal e que mais aproximou o nosso país do nível de vida da média da União Europeia. Já aqui recordei, alguns dos principais indicadores dos seus governos:

  • Crescimento médio anual do PIB acima dos 4% — chegou a crescer 7,86% em 1990);
  • PIB per capita quadruplicou (de 2.305 euros em 85 passou para 8.879 euros em 95) e a inflação baixou para 4,2% em 95 (quando em 85 era de 20%).
  • O nosso PIB per capita em 1995 correspondia a 81% da média da União Europeia, enquanto que a projeção para 2023 é de apenas 77,6% da média da UE.
  • Mais importante do que tudo: o país que hoje conhecemos como um membro de pleno direito da União Europeia começou a ser construído de forma integrada em todas as áreas no período do cavaquismo. Praticamente todas as leis estruturantes da governação foram feitas entre 1985/1995

São dados históricos irrefutáveis e que contam uma pequena parte das vitórias que Cavaco Silva construiu com os votos dos portugueses.

2 Quando ouvimos as reações azedas, de baixo nível, revanchistas e assentes em factos falsos percebemos como Cavaco Silva mexe com a esquerda e a extrema-esquerda. Nuns casos faz vir ao de cima o respetivo amor ao pensamento único, noutros salienta a face arrogante do poder instituído que não gosta de ver a sua narrativa oca e vazia contrariada.

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Nenhum deles, contudo, recordou que foi António Costa quem começou esta conversa, atacando despropositadamente Cavaco Silva no seu discurso de tomada de posse ao acusá-lo de ter construído um maioria que se confundiu com um “poder absoluto”.

A resposta de Cavaco veio em dois tempos e com objetivos claros:

  • Interpelou diretamente António Costa através de um artigo no Observador, desafiando-o a fazer melhor do que ele próprio como primeiro-ministro. Foi uma resposta certa, num estilo sarcástico pouco usual em Cavaco, para espicaçar Costa a “inverter a tendência do empobrecimento relativo do país”.
  • Numa entrevista à jornalista Maria João Avillez, emitida pela CNN Portugal, Cavaco deu uma ajuda importante a Luís Montenegro na luta contra a erosão eleitoral do PSD, mostrando “esperança” e “confiança” no mandato do novo líder para combater a “apatia dos militantes do PSD” (“é preciso acordá-los”) mas também lhe deu três conselhos simples: uma oposição clara e dura ao Governo do PS, defender sempre o legado de todos os ex-líderes do PSD (como Passos Coelho) e um PSD livre dos rótulos de esquerda ou direita.

A única reação que conta, contudo, é a de António Costa. E Costa sentiu necessidade este fim-de-semana de estabelecer uma grande meta para o seu Governo: promover uma subida de 20% dos salários médios dos portugueses.

Ora aqui está uma verdadeira meta ambiciosa de António Costa, pelo que podemos dizer que a mesma foi a primeira consequência da intervenção de Cavaco. É caso para dizer que valeu a pena!

3 Tenho que dizer, por outro lado, que estas respostas de Cavaco Silva impunham-se por uma razão simples: o legado das suas maiorias tem de ser defendido porque o PS parece querer destrui-lo através de uma campanha de permanente desinformação.

E porque é que isso acontece? Por uma razão simples: Cavaco Silva é, juntamente com Mário Soares, o político por excelência da democracia portuguesa.

Soares foi fundamental na implementação de um Estado de Direito e de uma democracia representativa a seguir ao 25 de Abril de 1974, assim como na entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia.

Mas Cavaco Silva foi o primeiro-ministro que moldou o país moderno que conhecemos hoje. Se aqueles que vieram a seguir, nomeadamente António Guterres, tivessem feito a sua parte e aproveitado o tempo de vacas gordas de que beneficiaram, certamente que estaríamos muito melhor hoje em dia.

É por isso que a luta encarniçada do PS e da extrema-esquerda contra Cavaco Silva é uma luta pela memória coletiva em que o centro-direita não pode deixar os socialistas sozinhos a estabelecerem uma narrativa sem adesão à realidade.

4 Ironicamente, o PS parecer querer cometer o tal erro capital do “poder absoluto” que imputa a Cavaco Silva. Veja-se o caso do Tribunal Constitucional e do veto à candidatura de Almeida Costa por parte dos juízes indicados pelos socialistas.

Ponto prévio sobre este tema. Votei a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez nos dois referendos em 1998 e 2007 e não defendo a alteração da lei atual — que me parece equilibrada e que permitiu lutar contra o flagelo do aborto ilegal. Nem vale dizer mais nada sobre a importância que dou à liberdade de imprensa como elemento estrutural da Democracia porque já falei e escrevi inúmeras vezes sobre esse tema.

Faço o meu registo de interesses sobre estes dois temas por terem sido estas as principais críticas que foram feitas a Almeida Costa para fomentar uma avaliação negativa na Opinião Pública sobre a sua candidatura a juiz do Tribunal Constitucional (TC).

E também para que o leitor perceba que, apesar de eu discordar radicalmente das posições de Almeida Costa, tal não significa que defenda o silenciamento da sua posição ou que concorde com uma espécie de veto público à sua candidatura.

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Deixando a questão da liberdade de imprensa de lado — que foi mais uma gafe de alguém que confundiu o formalismo de uma audiência parlamentar com uma conversa de café —, Almeida Costa tem claramente uma posição tipicamente conservadora sobre a interrupção voluntária da gravidez.

É precisamente essa a primeira grande questão que se coloca: saber se o conservadorismo enquanto corrente político-filosófica é aceite como legítima pelo poder político e pela comunicação social em geral e, por outro lado, se representa uma parte da sociedade portuguesa.

Se definirmos o conservadorismo com uma corrente de pensamento que traduz uma resistência ou um pessimismo perante a mudança — e não uma oposição total, absoluta e eterna à mudança. Se pensarmos que o conservador tem uma ligação direta com a tradição — que quer defender para o futuro e não para o passado, como explica Miguel Granja neste belo texto in memorium de Roger Scruton

Então podemos olhar para os conservadores como os grandes antagonistas dos progressistas — que muitas vezes querem a mudança pela mudança. Isto sem esquecer que a realidade é dinâmica e os progressistas de ontem podem transformar-se nos conservadores de hoje.

6 Falando da realidade portuguesa, desde o 25 de Abril de 1974 que o conservadorismo passou a ser sinónimo de reacionarismo. Devido à Ditadura, apoiada pela Igreja Católica e pelos setores conservadores da sociedade portuguesa, quem se assuma como conservador, corre o risco de ser automaticamente catalogado como salazarista, como alguém retrógada e incapaz de aceitar a evolução.

Se for católico, o risco aumenta exponencialmente — numa mistura explosiva de ignorância sobre o papel histórico da Igreja Católica e o jacobinismo primário.

É esta mistura irónica de diferentes preconceitos que me leva a dizer que o conservadorimo não é aceite pelo Portugal democrático como algo natural e legítimo.

7 Dando de barato a tremenda injustiça que é julgar alguém por um artigo com mais de 30 anos — o aspeto mais polémico do artigo (os casos de gravidez por violação), por exemplo, está relacionado com a alteração legislativa que estava a ser discutida naquele momento dos anos 80 no TC —, a razão de ser de muitas das críticas a Almeida Costa tem a ver com a sua alegada oposição conservadora à interrupção voluntária da gravidez.

Mesmo partindo do pressuposto de que o professor de Direito mantém a sua oposição, repito que tenho uma visão radicalmente diferente. Mas defendo que os opositores ao aborto possam expressar as suas posições — mesmo que sejam exatamente iguais às que foram expressas num artigo com mais de 30 anos.

Não só porque o pluralismo de opiniões é fundamental para uma sociedade livre mas também porque essa é uma posição juridicamente defensável — e este é um ponto fundamental porque é de Direito que estamos a falar. Almeida Costa tem a companhia de inúmeros e conceituados juristas, como José Cardoso da Costa e Rui Moura Ramos (ex-presidentes do TC) ou de Maria Lúcia Amaral (atual provedora da Justiça). E isso explica porque razão as votações sobre o aborto sempre foram historicamente renhidas, como aconteceu a última vez em 2010.

Sendo certo que a Constituição protege o direito à vida, estes juristas consideram que tal direito se alarga à “vida intra-uterina”, logo o feto tem uma proteção constitucional que não pode ser ignorada. Apesar de todos esses (e muitos outros) juristas que pensam assim serem católicos, isso não faz com que esta posição que é jurídica (e não religiosa) possa ser automaticamente desclassificada. Antes pelo contrário.

Acresce a tudo isto que é essencial que o Constitucional tenha um equilíbrio entre esquerda e direita, entre progressistas e conservadores, entre coletivistas e liberais.

E sem esse equilíbrio, corremos o risco de que se constitua um poder político absoluto — o tal que o PS de António Costa jura que não quer construir.