Passaram menos de 48 horas sobre a eleição de Emmanuel Macron, o neófito, o banqueiro, o liberal, o salvador da pátria, e já quase tudo o que podia ser dito foi dito, e já todos os olhos se voltam para novas margens:

Para Londres e o novo referendo sobre o “brexit”; bem sei, são eleições gerais, mas o brexit será o tema central da campanha e a razão por que muitos britânicos irão votar a favor ou contra a senhora May.

Para Paris, de novo, e a eleição dos 577 deputados da câmara baixa; bem sei que já há presidente, mas as experiências de coabitação em França não são felizes e não será fácil Macron construir uma maioria de direito próprio na assembleia nacional, salvo com recurso a alguma poção mágica que saia do caldeirão de Panoramix. Sobrará uma solução de apoio parlamentar contra-natura, mais ou menos forçada, e sempre frágil.

E para Berlim, dentro de algum tempo, na decisão sobre a continuidade de Angela Merkel. Após 12 anos como chanceler, Merkel é o último grande farol do liberalismo ocidental: não confundir com neo-liberalismo, como tanta gente faz, erradamente.

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Não sei porquê, Emmanuel Macron fez-me lembrar Asterix na noite da sua vitória. O jovem rebelde a caminhar no pátio do Louvre ao som da nona; a ironia de ter sido parte do regime que pretende reformar, embora durante um curto período (2 anos); o discurso iconoclasta q.b. (também em Asterix o verdadeiro iconoclasta é Obélix e, talvez, o bardo, mas esse não tem nada a dizer porque não o deixam) contra os poderes instalados e pela renovação do sistema; finalmente, como Asterix, Macron terá os seus 12 trabalhos, decerto infinitamente mais difíceis de realizar do que os do pequeno gaulês de bigode farfalhudo e amarelo.

A luta contra o desemprego. A redução do peso do Estado, na economia e na sociedade (“bonne chance, Monsieur le Président”). A renovação da classe política gaulesa (a começar pela escolha do primeiro-ministro). Um crescimento sustentado, a bem do ambiente. A melhoria do sistema educativo, com mais professores. Umas forças armadas, de novo, bastião do orgulho gaulês. A resposta aos receios dos franceses quanto ao terrorismo. Lidar com o Kremlin sem pôr em causa a segurança das fronteiras europeias. A relação com Trump (chegaremos a ouvir o presidente norte-americano dizer “he is a great guy”?). Os apoios na saúde – reembolsar por exemplo as próteses dentárias – sem aumento do défice orçamental. Justamente, sanear as contas públicas. Promover a reforma da União Europeia, a começar pela zona euro. E “last but not the least, but surely the toughest”, restaurar a confiança dos franceses nos seus líderes, a começar pelo Presidente.

12 trabalhos, qual deles o mais complexo.

Macron é liberal. Acusaram-no disso, aliás: um liberalão, como se diria em português, defensor do grande capital, banqueiro que foi (na verdade foi apenas bancário, e por pouco tempo, mas não soa tão bem como slogan anti-capitalista). É mais um liberal social do que um liberal “tout court”, e muito menos um neo-liberal. Pode dizer-se que é um liberal “rawlesiano”, como alguém escreveu a seu propósito na passada semana.

John Rawls, no livro seminal “Uma Teoria da Justiça”, considerou que Liberdade e Igualdade não são mutuamente exclusivas e que um sistema de justiça que trate todos da mesma forma, independentemente de classe social, género, etnia e outros critérios, tem efeitos positivos na sociedade. Não há é muitos sistemas de justiça assim, e essa talvez seja a razão para a actual crise de confiança dos povos ocidentais nas respectivas democracias (a desigualdade, claro).

Ora Emmanuel Macron vai visitar Angela Merkel em breve. É importante que o faça. A reforma da União Europeia tem de começar já e já tarda. Ela depende em larga medida da vontade da chanceler alemã de ceder naquilo que, até agora, tem sido para a Alemanha inegociável: a austeridade fiscal. Mas o presidente francês defende que Merkel (e Schäuble) tem de entender que não há Europa integrada possível enquanto uns países obtiverem resultados muito melhores do que os outros; e preconiza uma união monetária reforçada, e completada, com solidariedade fiscal e mais instituições comuns (…um orçamento para a zona euro).

Um “new deal” para a Europa, eis o que pretende Macron. Estará Merkel “pelos ajustes”?

O pequeno e jovem gaulês ver-se-á pois em breve “entre os godos”. Mas há outro horizonte a perscrutar, tão ou mais importante, e no qual Emmanuel Macron terá de ousar agir: as instituições europeias de Bruxelas, entre os belgas, os odiados (pela extrema-esquerda, pela extrema-direita, por todos os eurocépticos) “eurocratas”, os políticos não eleitos que, diz-se, mandam na Europa (ainda que as mesmas extremas e cépticos também digam que quem manda na Europa é a Alemanha). Ainda que os referidos “eurocratas” sirvam os interesses dos Estados-membros e não tenham nunca a última palavra (que pertence ao Conselho Europeu, cada vez mais), algo terá de mudar para que nada fique na mesma. César, na generalidade dos episódios, mais do que o inimigo figadal da aldeia dos irredutíveis gauleses, acaba no fundo por servir os interesses de Abraracourcix, Décanonix e Ideiafix.

Num mundo cada vez mais global, interligado e interdependente, a luta para preservar as organizações e as instituições que ajudam os europeus – a sobreviver (segurança) e prosperar (economia) – é permanente. A vitória do social liberalismo, globalizante e inclusivo, de Emmanuel Macron, não representa a derrota definitiva dos campos romanos de Babaorum, Aquarium, Laudanum e Petibonum, onde se acantonam os verdadeiros inimigos da Gália, mas um sobressalto de esperança para a generalidade dos seus habitantes – e dos de Roma.

De certa forma, pode dizer-se que a guerra pela alma da Europa e o futuro dos europeus ainda mal começou. Algumas batalhas ganhas não significam senão um alívio, que só uma reforma profunda das instituições, nacionais e europeias, pode consolidar.

Seja entre os godos, os belgas ou os bretões – cuja grande ilha partiu já rumo a um distante e ignoto porto chamado “brexit” –, o jovem rebelde gaulês feito chefe da sua aldeia, a Gália, tem um destino a cumprir: todas as esperanças da velha Europa estão com ele.

Assim o céu não lhe caia em cima da cabeça.

PS. E como que a lembrar já a Macron que não haverá um único dia de lua-de-mel, os acontecimentos de ontem à noite na Gare du Nord. Afinal, os 12 trabalhos são 13. Ou mais.