Sustenha-se a respiração: aconteceu mesmo. Por uma nesga, mas aconteceu. O Reino Unido escolheu “sair” da UE e, pela primeira vez, um país vai fazer o caminho da desintegração europeia – e logo este, que é a quinta maior economia do mundo. Mas aconteceu porquê? Porque, tal como assistimos com outros governos da UE, a ascensão dos populistas condicionou a governação de Cameron que, para travar o UKIP e acalmar certas franjas do Partido Conservador, prometeu este referendo. Ou seja, com uma artimanha para se manter no poder, Cameron aceitou brincar com o fogo e queimou-se. Queimou-nos. Na Europa, uma nova história começa hoje.

O primeiro erro de Cameron foi, de facto, a motivação com que convocou o referendo. O principal erro foi tê-lo efectivamente convocado, legitimando que uma decisão com esta gravidade ficasse nas mãos trémulas do voto popular. Sim, a popularidade e legitimidade que os referendos recolhem, enquanto instrumento democrático por excelência, devem ser valorizadas. Mas o ponto é que isso não afasta a evidência de que, em matérias complexas e de gravosas implicações, confiar na decisão popular significa entregar o destino colectivo à sorte e à manipulação do debate público. A troca de galhardetes que enquadrou este referendo é a prova desse perigo: o Reino Unido decidiu sobre uma matéria constitutiva e com implicações tremendas para a estabilidade política de todo um continente em função de factores emocionais (o assassinato da deputada Jo Cox, nacionalismos, o medo dos estrangeiros) e circunstanciais (emigração, terrorismo, crise económica). Ou seja, rejeitou décadas de integração europeia por causa de slogans, de um debate manipulado (de ambos os lados) e de soundbytes roubados à mitologia da II Guerra Mundial. Em vez de esclarecimento, houve confusão. Em vez de sensatez, houve desvario. Em vez de rigor, houve factos e números inventados. Por um acaso, a escolha recaiu no “sair”. Amanhã, caso se repetisse o referendo, o resultado poderia muito bem pender para o outro lado. E, por isso mesmo, não seria surpreendente que o referendo se repetisse daqui a uns meses e tivesse o desfecho oposto. Vai uma aposta?

Seja ou não definitivo o caminho que os britânicos escolheram, David Cameron (que já apresentou demissão) sai pela porta pequena. Não importam os sucessos da sua governação e as vitórias nos combates que travou. Na batalha mais importante de todas – a da defesa da UE e da democracia no continente europeu contra a ascensão dos populismos – Cameron cedeu à tentação dos jogos de poder, arriscou décadas de integração europeia, deu força a populismos eurocépticos, dividiu um país (o Reino Unido conseguirá manter-se unido?) e atirou-o para a incerteza económica. Num acto irreflectido, Cameron pôs tudo em causa. Será recordado por isso.

E agora? Há uns meses, quando o Observador me pediu para apontar aquele que seria o acontecimento político de 2016, indiquei o referendo do “Brexit”. Neste momento, é ainda impossível quantificar o quanto essa previsão foi certeira. É que, ninguém duvide, o erro de Cameron vai sair muito caro. A eles (britânicos) e a nós (europeus e portugueses).

Alexandre Homem Cristo é colunista do Observador

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