Estamos em ano de eleições autárquicas e estes são tempos em que algumas questões pertinentes devem ser colocadas no espaço público. Questões que não dispensamos quando nos referimos aos diversos órgãos – e agentes – da administração central, integrem eles o poder executivo, legislativo, regulatório, policial ou investigatório/sancionatório. Questões que não podemos deixar de colocar também aos órgãos e agentes do poder local.

Cada vez mais, mostramos especial atenção e sensibilidade aos abusos da chamada “administração central”, particularmente quando estão em causa indícios ou provas de corrupção e compadrio. E não faltam razões para isso, reconheçamos.

Esquecemo-nos de olhar para o chamado “poder local” que integra as autarquias, apesar de frequentemente serem chamuscadas com suspeitas e/ou provas de corrupção a partir de denúncias ou investigação policial.

Porque “esquecemos” esta mancha que impende sobre muitas autarquias, infelizmente em número e dimensão crescentes? Quando nos preparamos para eleger os autarcas para a nova legislatura, esta é uma questão que não nos interessa? Esgotamos a nossa atenção e capacidade crítica do que se passa no distante “poder central” e desinteressamo-nos do que se passa à nossa volta, no “poder local”? A questão merece ser refletida, fazendo um esforço para perceber as causas desse desinteresse.

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Nos primeiros anos de consolidação do poder autárquico, olhámos para essa inovadora experiência com o desvelo com que olhamos para tudo o que é “pequenino” e está a dar os primeiros passos – afinal não estávamos habituados a eleger os nossos representantes autárquicos, aquelas pessoas com quem todos os dias nos cruzamos na rua e que, de tão próximos, conheciam bem os nossos problemas, os problemas do concelho e da freguesia. E essa proximidade – pensávamos –  colocava os eleitos em boas condições para encontrar as melhores e mais desburocratizadas soluções para os problemas e os desafios de cada concelho, de cada freguesia!

O tempo foi passando, as eleições autárquicas foram-se sucedendo e nem sempre as soluções eram as que esperávamos, da mesma forma que foram emergindo métodos, comportamentos e aproveitamentos que, de todo, não esperávamos. O compadrio – familiar, económico, partidário – foi a erva daninha que medrou em muitas autarquias, onde focos de corrupção começaram a ser conhecidos no espaço público, para surpresa inicial de quem teceu loas às virtudes com que, na génese, olhámos o poder local.

Hoje temos conhecimento (e consciência) que em muitas autarquias a corrupção é uma erva daninha que nada fica a dever à virulência com que cresce nos orgãos da administração central do Estado. Com uma diferença substancial que resulta do contexto em que é exercido o poder autárquico – não existe controlo nem fiscalização de proximidade, quando nos reportamos ao papel insubstituível da comunicação social e o que dela se espera.

Quando falamos de imprensa regional – a quem compete estar atenta em primeira linha – falamos de uma realidade tão complexa na sua génese como nos seus objetivos, prática, solidez profissional, económica e titularidade.

Na sua maioria títulos com pequenas tiragens, amadores na organização, sem condições de autonomia editorial, muitos jornais locais/regionais têm vocação mais religiosa do que cívica, enquanto outros dependem direta ou indiretamente do poder local ou de caciques partidários e económicos que os financiam. Restam, ainda, os que são propriedade de empresas que gravitam na órbita das autarquias e das obras que estas promovem.

Entre as centenas de títulos que constituem esta imprensa local, poucos são os que não são confessionais ou não integram o círculo comprometido de empresas com ligações e/ou interesses muito próximos a autarquias, partidos políticos, velhos (e novos) caciques locais, associações ou grupos onde germinam esses caciques.

Não se pode ainda esquecer uma outra parte desta realidade – as rádios locais. Poderão elas suprir as lacunas aqui reportadas aos jornais locais e constituírem-se como guarda avançada e exigente dos diversos órgãos autárquicos?

Também não têm condições para isso, seja porque muitas vezes têm ligação umbilical aos jornais locais, seja porque os titulares e/ou financiadores são comuns a estas duas vertentes da mesma realidade – a comunicação regional. Em muitos casos, quem patrocina/apoia o jornal e a rádio são os mesmos interesses, as mesmas pessoas, as mesmas instituições e a contrapartida desse apoio é, naturalmente, o seu controlo editorial.

É à luz desta realidade informativa (com honrosas mas poucas exceções), que nos podemos interrogar – quantas vezes, ao longo dos últimos anos, os casos de corrupção, compadrio e tráfico de influências que têm manchado o poder local, foram objeto de denúncia da imprensa local/regional? Quantas vezes os munícipes souberam do que se passava de mais censurável na “sua” autarquia a partir de notícias e investigação jornalística, de forma a separarem o trigo do joio?

Ficam a conhecer os factos, os personagens e esquemas que os surpreendem (revoltam?) quando eles são dados a conhecer por uma televisão, uma rádio ou um jornal de âmbito nacional, mais distante e menos dependente do caciquismo e interesses locais. Basta olharmos para o que se veio a conhecer em Vila Real de Santo António, em Castelo Branco, em Oeiras, na Guarda, em Barcelos, em Leiria e tantas outras autarquias do país, onde se têm vindo a conhecer situações que em nada prestigiam o poder autárquico.

E quando não falta por aí quem queira reforçar as competências das autarquias esquecendo os indispensáveis mecanismos locais de controlo, não só se está a criar o “monstro” da corrupção local, como se impede aos munícipes que exerçam uma cidadania (bem) informada e responsável quando depositam o voto na urna. Em última instância não será exagerado afirmar-se que se estão a por em causa valores essenciais da democracia, já que um munícipe mal informado não passa de um eleitor enganado.