A autópsia política da Dra. Marta Temido não se justifica. Não é tempo de mais acrimónia e de julgamentos de intenções pessoais. A política em Portugal sofre de falta de civilidade e a democracia sofre com isso. Sobre si, a própria fará as análises que entender, quando as emoções o permitirem. Para lá das gafes, dos dislates, da maior ou menor falta de jeito, da alavancagem artificial, do espetáculo que lhe montaram, da encenação constante, da estratégia de comunicação improvisada, dos erros de apreciação, da falta de liderança, do excesso de confiança, enfim, de todas as “armadilhas” que a governação oferece aos neófitos da política, não é eficaz a dissecação política da Dra. Marta Temido.

Quando confrontados com a “morte” política de um ministro, os suspeitos do assassinato, ou do suicídio encomendado, são os do costume. Os companheiros de estrada, no governo e no partido, os stakeholdersirritados, os media sôfregos de notícias impactantes, todos são os normais “inimigos” de um governante. A relação com os que rodeiam o gabinete é sempre bem mais difícil do que defrontar a oposição, os “adversários” institucionais, cujo tonitruante discurso é feito para consumo do eleitorado e raramente informa a governação. Ao invés de rever o desempenho pessoal da ministra cessante, o que nos interessa agora é avaliar políticas.

Começo por quem paga a saúde em Portugal. A decisão de eliminar as taxas moderadoras, exceto no recurso não referenciado aos serviços de urgência, foi uma boa decisão. Não porque tenha ajudado os mais desfavorecidos, já isentos de pagamento*, mas porque protegeu os mais “abonados”, a classe média que paga impostos e sustenta os serviços públicos de que a metade da população que não paga IRS se serve também. A este estado de coisas chama-se solidariedade. Solidariedade um pouco enviesada, convenhamos. Já vou explicar.

O problema é que, para lá destas taxas, a classe média e não apenas os de rendimentos mais altos, tem tido necessidade de contratar planos e seguros de saúde para conseguir cuidados em tempo útil. Esta necessidade de procurar proteção complementar de saúde, para lá do SNS que se paga com impostos, tem vindo a aumentar durante os anos de governação socialista. Dados que não consegui confirmar, mas que me parecem credíveis, apontam para mais de 5 milhões de pessoas com cobertura de saúde para lá do SNS.  A despesa privada, o out of pocket que se adiciona ao pagamento de impostos, tem vindo a crescer nos últimos anos, com exceção de 2020 (ano de maior impacto da pandemia). Na conta satélite da saúde referente a 2021 pode ler-se que “a despesa corrente privada também terá aumentado significativamente em 2021 (+14,7%) – a despesa pública aumentou 11% -, contrariando a forte redução do ano anterior (-5,5%). Isto deveu-se, principalmente, ao aumento da atividade assistencial dos prestadores privados, nomeadamente dos hospitais, dos prestadores de cuidados em ambulatório, dos serviços auxiliares e das vendas de bens médicos”.  De acordo com os dados divulgados pelo INE, entre 2005 e 2011, durante os governos do Eng. José Sócrates, a despesa corrente privada em saúde aumentou de 4.447 milhões de euros para 5.576 milhões de euros (mais 1.129 milhões de euros). Entre 2011 e 2015, durante a governação do Dr. Passos Coelho, a despesa corrente privada em saúde aumentou de 5.576 milhões de euros para 5.948 milhões de euros (apenas mais 372 milhões de euros). Entre 2015 e 2021, dados preliminares, aumentou de 5.948 milhões de euros para 8.040 milhões de Euros. Um aumento de despesa privada superior a 2 mil milhões de euros!  Nenhum governo fez tanto pelo crescimento da medicina privada em Portugal como os governos socialistas, incluindo a coligação com BE e PCP. É um paradoxo. De forma praticamente constante, cerca de 1/3 da despesa corrente em saúde é suportada por privados e mais de um quarto, próximo de 30% da despesa corrente em saúde, tem as famílias como agente financiador. Uma dupla “tributação” inaceitável. Ao menos que houvesse redução na matéria coletável em IRS da totalidade dos prémios de planos e seguros.

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O crescimento do setor privado da saúde é um dos subprodutos da falência do SNS. As necessidades não resolvidas em saúde levam a que quem pode pagar vá comprar cuidados a quem os tem para vender. E, naturalmente, prefere comprar antecipadamente, já que um plano ou seguro de saúde pode oferecer preços por ato inferiores aos de balcão, comprando na hora. Ora, a injustiça reside em que são os mesmos que pagam IRS que acabam a contratar coberturas extra porque não confiam nos tempos de resposta do SNS ou, muitas vezes erradamente, na qualidade do atendimento prestado. É este o primeiro enviesamento da solidariedade. Quem mais paga pelo SNS é quem menos se serve dele.

E o enviesamento seguinte é que o investimento que fazemos na solidariedade, com os nossos impostos, apenas garante um SNS também insuficiente para as necessidades dos mais pobres.

É certo que muitos “ricos” acabam por descobrir que há um ponto em que acabam a recorrer ao SNS. Porque o seguro deixa de cobrir os mais doentes e com tratamentos mais dispendiosos, porque o aumento do prémio que é crescente com a idade se torna incomportável ou até porque descobrem que afinal só o SNS é técnica e tecnologicamente capaz de receber todos os casos, sem desnatação daqueles com pior prognóstico. Até lá, sem que o Estado se importe, andaram a pagar coberturas “extra” com receio de um dia precisarem de uma colonoscopia de rotina e só a conseguirem daí a um ano ou necessitarem de uma consulta de especialidade que é marcada quase 600 dias depois, uma TAC para daí a 6 meses. E, estaremos todos de acordo, ir para a fila do centro de saúde na madrugada não é uma forma cómoda de aceder a cuidados primários atempados.

Qualquer solução terá de passar pelo equilíbrio das proporções entre universalidade, generalidade e gratuitidade. Neste momento, o SNS é universal, embora com atrasos de atendimento que lhe retiram eficácia nas coberturas de grande parte da população, tende a não ser geral e, independentemente da gratuitidade no ponto de contacto, já vimos que agora é pago sem retorno na mesma dimensão. Uma das formas de alterar este estado de coisas, para lá do crescimento e melhoria da oferta no SNS, é abrir o sistema de saúde a toda a população. A minha perspetiva, resultante de longos anos a servir populações muito doentes e com rendimentos reduzidos, é a de um sistema integrado em que os setores privado e social, naturalmente abertos a todos que os preferirem, sejam supletivos do SNS. Pode fazer-se isso através da contratação de serviços aos setores social e privado, com preços regulados ou convenções alargadas, por extensão do seguro público (ADSE) a toda a população ou com financiamento público de despesas individuais de saúde que ultrapassem a cobertura do seguro, no fundo com a construção de um sistema em que a vertente Bismarkiana do financiamento tenha maior protagonismo. Mais do que excesso de ideologia, as políticas do governo PS para a saúde têm tido falta de ideias. Todavia, porque há sempre generalizações erradas, urge reconhecer que o governo em funções, finalmente, adjudicou a construção do Hospital Oriental de Lisboa e elegeu um vencedor para a manutenção da gestão em PPP para o Hospital de Cascais, o único que aceitou manter o contrato vigente até nova concessão.

Reconheço os riscos inerentes ao aumento da dependência do setor privado, em termos de oferta e preços praticados, mas a verdade é que o desinvestimento no SNS que tem sido feito, apesar do aumento de verbas em sede de OE, tem sido o fator determinante para o crescimento do setor privado e consequente “sangria” nos rendimentos dos pagadores de IRS. Daí que recorrer ao sistema de saúde não deva corresponder a um aprofundamento no défice de investimento na saúde pública e na prestação de cuidados pelos serviços públicos. Precisamos de um SNS que sirva pobres, remediados e ricos com a mesma qualidade. Nada pode dispensar os investimentos constantes na renovação e manutenção da oferta de alta diferenciação técnica que compete ao SNS. Não parece ser esta a visão do atual governo quando o investimento público no SNS está a cair 33%, de acordo com dados oficiais.

No entanto, convirá repetir que uma expansão da assistência pública através da prestação de cuidados pelos setores privado e social imporá a necessidade de controlar a oferta, impedindo indução de procura e desperdício de atos assistenciais e prescrições.  Sempre que o universo de prestadores cresce tem de haver reforço de sistemas de controlo e de estandardização, o que terá custos associados que não podem ser ignorados. O gate keeping, tal como as seguradoras fazem, tem de ser reforçado se o SNS for mais complementado pela parte não estatal do sistema. Por outro lado, apesar da exaustiva repetição de que o sistema privado é mais eficiente, podendo sê-lo em parâmetros que medem acesso e produção, é questionável se os resultados de saúde são melhores no sistema social e privado do que no setor público. A medição da produtividade e eficiência em saúde é uma matéria muito mais complexa do que medir atos/hora.

Portugal precisa de racionalidade para o desenvolvimento do SNS, avaliação muito rigorosa e sistemática da qualidade – efetividade, eficiência, satisfação – em termos de estruturas, processos e resultados, mas com uma relação de equidade que proteja todos os portugueses e não apenas os mais desfavorecidos. E, para tal, a saúde tem de ser uma prioridade política primária. Ainda não é.

Vejamos o caso da COVID-19. A resposta política, nem sempre boa, aconteceu porque havia um perigo real e presente. Foi o risco político que determinou a atenção do governo, nem sempre consistente e publicamente nada consensual, nem mesmo entre os responsáveis. E o nosso governo, passada a crise pandémica, em que qualquer sinal positivo seria melhor do que o medo de morrermos todos, demonstrou que não estava preparado para a governação do sistema de saúde em estado basal. E o estado basal é o de listas de espera crescentes, cuidados adiados, faltas de pessoal, reivindicações profissionais, manutenção deficiente de edificado e equipamentos, dinheiro mal alocado, prioridades por identificar, indicadores desfavoráveis por explicar. Este “estado basal”, reconheçamos, é ingovernável e quem quiser assumir a pasta da saúde tem de começar por alterar o business as usual para conseguir fazer alguma coisa pela saúde dos Portugueses.

*O governo do Dr. Passos Coelho, à revelia da Troika e não para lá dela, decidiu alargar o universo de isentos de taxas moderadoras na saúde aos agregados familiares de todos os desempregados, além daqueles que usufruíam de rendimentos mínimos, pensões e salários, e a todos os menores de idade, ou seja, até aos 18 anos de idade. Nunca, até então, tinha havido um número tão grande de pessoas isentas de taxas moderadoras.

PS. Agradeço a todos os que tiveram a gentileza de ler até ao fim. Porventura, ficarão mais bem servidos se também lerem o Professor Miguel Gouveia no Blog da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Acreditem que só encontrei este Blog depois de já ter escrito a minha opinião, mas não fiquei surpreendido com as muitas concordâncias.