O Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), agora na versão do Decreto-Lei 52/2022 de 4 de agosto, é, ao contrário da Lei de Bases da Saúde, uma peça importante do ponto de vista organizativo para o SNS. Completa a Lei Orgânica do Ministério da Saúde e, junto com a Lei, determina as agências do Ministério para a execução da política de saúde no SNS, as suas competências e relações. Este estatuto tem algumas novidades. O Decreto-Lei, além do Estatuto do SNS, também introduz alterações ao nível dos cuidados primários, por via de um novo regime de criação, organização e funcionamento dos agrupamentos de centros de saúde (ACES), ao mesmo tempo que revê, de forma limitada, os Estatutos dos hospitais do SNS. Meteram tudo no mesmo saco.

Ao nível dos Estatutos do SNS importa realçar a manutenção da ideia de que ao SNS podem pertencer estabelecimentos privados, incluindo os de natureza social, embora de forma mitigada pela Lei da Bases, e que os recursos da comunidade podem ser chamados a colaborar na melhoria do estado de saúde das populações. Mais à frente, voltando a fechar a porta a soluções de gestão de instituições do SNS contratualizada a privados, a legislação é clara quanto a que a gestão do SNS é pública. Dá e tira com a mesma mão.

Do ponto de vista dos chamados níveis de cuidados, mantém a divisão clássica com o acrescento de que os cuidados paliativos podem e devem ser prestados em todos os níveis (primários, hospitalares e continuados), numa visão que extravasa os cuidados de fim de vida. É uma boa redação. A referência a que “sempre que possível, devem ser apoiados e desenvolvidos os cuidados no domicílio” é uma redundância que não faz sentido incluir num diploma legal. Na mesma linha, o artigo 8º deste Decreto é verbo de encher e repetição de truísmos. Na verdade, para arrumar o assunto, este decreto de Estatuto está cheio de matéria que não é verdadeiramente estatutária e só serve para encher papel, até porque já está contemplada em outros diplomas.

A partir do artigo 9º, vem o sumo, a novidade da Direção Executiva sobre a qual já me pronunciei em artigo anterior. E as dúvidas expressas ficaram ainda mais evidentes depois de ouvir o Dr. Fernando Araújo em entrevista à CNN, na noite do dia 5 de novembro. A sua postura foi a de um “mini”-ministro, com alguns toques de saudosismo dos tempos em que foi secretário de Estado, assumindo um discurso, essencialmente político, cheio de laivos panglossianos entre cautelas e apelo a sacrifícios. Tudo repleto de promessas sobre matérias intangíveis – conciliação do trabalho com a família, como se anunciasse reduções de horário, com muita alegria no dito (trabalho), autonomia sem mais dinheiro, etc. – e sem nada de evidentemente pragmático. Um governante em vez de um diretor-geral. Um político e não um executor. Manifestamente não lhe explicaram, não percebeu ou não quer perceber o cargo. E nós mais confusos ficámos. Por exemplo, não lhe compete comentar o orçamento do estado –matéria para o governo resolver com a AR –, nem deveria ter caído na tentação de responder à evocação dos seus tempos no hospital de S. João, emulando uma tolice dita pelo Dr. António Costa sobre lições do Norte ao Sul. O currículo e as capacidades do Dr. Fernando Araújo vão muito para lá do que fez no Conselho de Administração de um hospital e o seu tempo na política não deve ser revivido com este cargo de diretor-executivo. Tal como eu já escrevi, a transformação do cargo de diretor-executivo num cargo político é sublinhar a inutilidade da direção-executiva. Na CNN o diretor-executivo apareceu vestido de político e errou ao tê-lo feito. Para ministro, já chega o que temos.

Retive, contudo, três afirmações, porventura proferidas para lá das suas competências. Em primeiro lugar, a afirmação de que os salários base dos profissionais de saúde devem ser melhorados e não as horas extraordinárias. CORRETO! Em segundo lugar, a assunção de que é preciso aumentar ainda mais os trabalhadores com maior diferenciação e com responsabilidades acrescidas, ao invés do que tem sido feito habitualmente. CORRETÍSSIMO!! Em terceiro lugar, a necessidade de dotar o SNS da melhor tecnologia, necessariamente também dos medicamentos mais adequados às necessidades dos utentes, embora tenha usado o exemplo dos robots cirúrgicos que não é, longe disso, aquilo de que o SNS mais precisa em termos de inovação tecnológica. Enfim, ficámos a saber que o diretor-executivo também vai ser, entre as suas hercúleas tarefas, uma agência de avaliação de tecnologia. Mas o pior é que na sua exclamação de autonomia “TOTAL”, na aceitação de que negociará com sindicatos e, ainda pior, na confirmação de responsabilidade sobre o futuro de encerramentos de serviços – não se lembrou de falar em aberturas- colocou-se, mais uma vez, bem a jeito para ser o bode expiatório de que o Dr. Manuel Pizarro tanto precisa.

Deixo a nota de que só deverá dar nova entrevista quando tiver alguma coisa para apresentar. Não lhe serve, não nos satisfaz e nada resolve, ir à TV falar como um segundo ministro, imbuído de sintonias com o sacrossanto governo da nação, disfarçando a subserviência ao poder, que serve e de que quer ser parte integrante, através da candura de se sentir capaz de dizer “não” ao amigo Pizarro. Que diabo, isso é conversa de travesseiro, coisa da gestão íntima de gabinetes ministeriais e que nada interessa a quem quer ver a obra que tarda.  E um aviso quanto a visitas a serviços. Não leve comitiva ampliada, vá lá sem que disso se faça notícia, não caia em todas as “apetecíveis” esparrelas a que o ego, falta de argúcia política e empurrões de bem-intencionados, levam os diretores-gerais.

O Decreto-Lei continua com grandes dificuldades em definir, em termos operacionais, o que são Sistemas Locais de Saúde. Quanto a recursos humanos, a questão mais fantasmagórica é a invenção da “dedicação plena”, coisa que não se percebe o que é, nem em que se traduzirá em ganhos para a qualidade e volume de produção assistencial. Como se pode exigir mais dedicação “plena” a quem já trabalha 40h / semana no SNS, sem que isso venha a ser horas extra? Por outro lado, de acordo com o texto legal, assume-se a manutenção de um regime de dedicação exclusiva, entretanto extinto por governo socialista anterior. O articulado sobre contratações, horas extra, mobilidade e fixação de profissionais, está deslocado de um decreto sobre Estatuto e, na verdade, o que é preciso fazer será mudar toda a lógica vigente de contratação de pessoal para o SNS, nomeadamente acabando com a fantochada dos concursos que subsistem. E por falar em concursos, desta vez não existente, relembro a natureza política de que investiram o diretor-executivo do SNS quando não colocaram o cargo a concurso como, por exemplo, se deve fazer para o presidente do INEM ou o Diretor-Geral da Saúde.

Há neste diploma dos Estatutos um outro problema de relação hierárquica que a lei cria e não resolve. Por exemplo, define que o INEM IP, bem, é parte do SNS, tal como a SPMS EPE. E depois cria uma direção-executiva do SNS. Afinal, em termos de relação de dependência, o INEM e a SPMS sempre ficam sob tutela do diretor-executivo ou serão agências a depender apenas do ministro ou secretários de estado? Adoramos confusões orgânicas e somos campeões de fazer leis confusas. Não teria sido mais fácil pensar num organigrama e depois fazer a lei de acordo com ele?

Sobre sistemas de informação, aqui referidos em artigo próprio, o problema tem sido falar-se e escrever-se há anos e quase nada, com exceção da prescrição eletrónica, da emissão de baixas médicas e dos certificados de óbito, ter sido feito. Tenhamos esperança.

Ao nível organizacional mantém as cinco ARS, que deveria ter extinguido, contradizendo o impulso centralizador que está refletido na criação da Direção Executiva.  Quanto aos ACES, a sua nova autonomia administrativa e financeira é bem-vinda e reforça a ideia de que as ARS já não têm razão para existir. Dever-se-ia ter aproveitado esta revisão, da Lei de Bases e do Estatuto do SNS, para atomizar a organização da prestação em termos de ACES e unidades locais de saúde (ULS), consoante o modelo geograficamente mais adequado, reforçando a intervenção dos municípios nas orientações sobre as localizações ideais das estruturas prestadoras. De igual modo, face às dificuldades de construção de meios e de contratação de pessoal, dever-se-ia admitir a gestão privada de ACES e até mesmo a contratação de cuidados primários prestados por privados onde o Estado não for capaz de os prover.

Na Parte V irei escrever sobre recursos humanos.

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