Avançar é preciso” e “Andar para trás, não!” são palavras de ordem clássicas dos comunistas, em cartazes, canções ou nomes de jornais (como o Avante! português ou o Avanti italiano, este último já extinto e que chegou a ser liderado por Benito Mussolini). Avanços e recuos encaixam na visão marxista da História: esta corresponde a um comboio que se dirige, numa linha única, para um determinado destino. Chegará lá, inevitavelmente. Poderá andar mais devagar, poderá até recuar por vezes, mas nunca sairá do seu trilho e atingirá a sua meta, que é a sociedade sem classes e, consequentemente, o fim da história (estes últimos substantivos podem ser lidos com ou sem maiúsculas iniciais). O comboio está confinado aos carris e não pode, portanto, andar para o lado, nem para cima ou para baixo. Não há outras opções. Que utilidade tem então a nossa ação? Quem participa na “luta” contribui para acelerar o comboio por forma a que ele chegue mais cedo ao fim da linha, se possível ainda no nosso tempo de vida.

Esta visão do destino da humanidade é profundamente religiosa. O destino está traçado, o final está bem definido, e só não sabemos quando virá. O Fim da História substitui a vinda do Profeta (ou a segunda vinda, consoante as versões). O Profeta virá, mais tarde ou mais cedo. O comunismo também. Os primeiros cristãos acreditavam na segunda vinda de Cristo ainda durante o seu tempo de vida (ver, por exemplo, Paulo na primeira epístola aos Tessalonicenses, 4:13-17). Os marxistas, por sua vez, anseiam pelo fim do capitalismo, se possível no seu tempo de vida, e olham com esperança para os sinais celestes, como o da crise do subprime em 2008.

Há quase trinta anos, Miguel Sousa Tavares fez uma série de entrevistas a propósito dos vinte anos do 25 de abril (Vinte Anos, Vinte Nomes). Uma delas foi a José Saramago. Quando Sousa Tavares lhe perguntou por que tinha aderido ao PCP em 1968, precisamente depois da “Primavera de Praga”, acontecimento em que, para quem ainda tivesse dúvidas, a URSS tinha demonstrado claramente a sua natureza totalitária, Saramago justificou-se dizendo que tinha aderido “pelos princípios” (não obstante a prática, subentende-se). Pensei, então, que o comunismo era muito semelhante a uma religião: por mais que a realidade demonstrasse a total falência dos estados socialistas, que associavam a negação absoluta das liberdades individuais (de expressão, de associação, de iniciativa económica, artística ou literária) à miséria das populações – e isso era ainda mais transparente porque já tinha caído o muro de Berlim –, apesar disso, dizia, o crente socialista continuava a negar as evidências ou, no máximo, a advogar que “aquilo” não era bem o comunismo, como faziam os escolásticos medievais quando ensinavam que as moscas tinham quatro patas, apesar de toda a gente ver, à vista desarmada, que tinham seis, como bem recordara o próprio Saramago na História do Cerco de Lisboa:

(…) neste aventuroso relato se dá como exemplo de erro a afirmação do sábio Aristóteles de que a mosca doméstica comum tem quatro patas, redução aritmética que os autores seguintes vieram repetindo por séculos e séculos, quando já as crianças sabiam, por crueldade e experimentação, que são seis as patas da mosca, pois desde Aristóteles as vinham arrancando, voluptuosamente contando, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, mas essas mesmas crianças, quando cresciam e iam ler o sábio grego, diziam umas para as outras, A mosca tem quatro patas, tanto pode a autoridade magistral, tanto sofre a verdade com a lição dela que sempre nos vão dando. (…) amanhã irão dizer os leitores inocentes e repetirá a juventude das escolas que a mosca tem quatro patas, por assim o ter afirmado Aristóteles (…)

Afinal (como sempre), aquilo em que eu tinha pensado não era novidade: Schumpeter, por exemplo, já tinha escrito em 1943: “[o] Marxismo é uma religião. Para o crente representa, em primeiro lugar, um sistema de objetivos que encarnam o sentido da vida e são as referências absolutas pelas quais os acontecimentos e as ações devem ser julgados; em segundo lugar, é um guia […] para a salvação da humanidade, ou de uma parte dela” [Capitalism, Socialism and Democracy, tradução minha].

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR