O ex-presidente dos Estados Unidos encontra-se envolvido num conjunto de investigações criminais, tanto a nível federal como estatal: o roubo de documentos secretos classificados, o ataque ao Capitólio no 6 de janeiro 2021, a tentativa de subverter a eleição presidencial de 2020 no Estado da Geórgia, investigação sob a direção da Procuradora Estatal Fani Willis, e fraude fiscal no Estado de Nova Iorque, neste caso com Letitia James. Incapaz de se defender, de uma forma plausível ou coerente, Donald Trump recorre a órgãos de comunicação social cuja única razão de existência é a divulgação e ampliação da propaganda MAGA. Esta semana, o líder do Partido Republicano, que determina quem são os candidatos ao Senado e Casa dos Representantes (promovendo os Trump Tickets nos seus comícios, ou seja, os “seus” candidatos e não os do partido) e o claro candidato a ganhar a nomeação para a eleição de 2024, aceitou ir ao programa de rádio de Hugh Hewitt. Hewitt é o mais próximo de algo que se assemelhe a intelligentsia do conservadorismo americano semi-fascista, tentando fazer pontes entre os argumentos extremistas da base, com os políticos “respeitáveis”, tanto no aparelho partidário como com legisladores eleitos. Hugh Hewitt, na verdade, é um pensador medíocre, que vendeu os seus valores (em tempos recuados, como muitos outros, ele era um feroz crítico do então candidato) no altar do Trumpismo. E isto por questões puramente financeiras, porque embalar e afagar a psique quebrada dos seguidores de Trump é o que gera receita agora.

Depois de um conjunto de inanidades sobre o tamanho das plateias nos comícios, de não ter culpa de nada, de não ter feito nada de mal, de estar toda a gente contra ele, que podia ter todos papéis que tinha no resort de Mar-a-Lago, ou que não tem nada a ver com papéis de “eleitores alternativos” que iriam lançar a eleição de 2020 para uma crise constitucional (já explicado neste espaço), Hewitt abordou o ponto que seguramente foi o primeiro em que pensara fazer, mal soubera que ia ter tempo com o ex-presidente. “[…] eu não penso que eles [o sistema judicial] vão parar até o indiciar [por crimes], Donald Trump. Você concorrerá a presidente, mesmo que seja indiciado?”.

Esta foi a oportunidade de Hewitt gerar um momento noticioso. Na verdade, não mais do que a confirmação de algo que tem sido dito em surdina aos jornalistas que gravitam na esfera dos conselheiros de Trump. Depois de uma resposta incoerente, repleta de mentiras e ilusões de grandeza não ter dado em nada, Hewitt percebeu que teria de insistir. “Eu estou só a perguntar se existir um procurador e eles (sic) o indiciarem, isso pode detê-lo de concorrer novamente a presidente?”. A resposta. “Eu não acho que as pessoas dos Estados Unidos vão aceitar isso. E mesmo que aconteça, como você sabe, eu não posso ser proibido de concorrer novamente.” Hugh Hewitt conseguira aquilo que queria. O ex-presidente, mesmo que indiciado, mesmo em julgamento, mesmo condenado, mesmo preso, pensa na possibilidade de voltar a ter todos os direitos que o ramo executivo dá ao detentor da Casa Branca. Hewitt quis rematar com mais uma oportunidade de servir de grande educador dos MAGA’s. “Isto era o que eu queria que as pessoas entendessem. Isso não o retira da arena”. E a coisa podia ter ficado por aqui. Trump poderia continuar a dizer o quanto os quatro anos da sua presidência foram os melhores da história do país, o quanto a América colapsa sob a Administração Biden, o quanto só ele pode resolver os problemas dos americanos. O que veio a seguir não podia ser mais negro. “Mas eu não penso que vá acontecer. Eu penso que iríamos ter problemas neste país como talvez nunca tenhamos visto antes. Eu penso que as pessoas dos Estados Unidos não iam aceitar isso.”

Para Trump, pensar que todas as pessoas dos Estados Unidos são seus apoiantes, ou que o que possa acontecer aos Estados Unidos se for indiciado nunca foi visto num país com a história que tem, é grotesco, mas não invulgar. Porém, a mensagem subjacente foi muito pior, e muito mais preocupante, do que o habitual discurso bombástico. Hugh Hewitt sabia. O ex-presidente sabia. Qualquer ouvinte sabia. Donald Trump ameaçava haver violência se o processo judicial seguir os trâmites legais. Hewitt podia ter mudado de assunto, uma atitude que seria cobarde, mas compreensível, ou podia ter criticado o convidado relembrando o mal que violência política tem num sistema democrático. No entanto, não. O chamariz era demasiado voluptuoso para resistir. Com um tom de voz ao mesmo tempo inquisitivo e conciliador, o anfitrião quis saber.  “Que tipo de problemas Sr. Presidente?”. “Eu penso que seriam grandes problemas. Grandes problemas”. “Você sabe que a imprensa vai dizer que está a pedir por violência com esta declaração (…)”. “Eu não estou a incitar. Eu estou só a dizer a minha opinião”.

Este é o modus operandi de Donald Trump. Já descrito repetidamente, até mesmo por um dos seus ex-advogados (Michael Cohen) numa audiência no Capitólio. Como um chefe de família mafiosa, ou Henrique II sobre Thomas Becket, a ordem nunca é dada diretamente. É sugerida. Para haver sempre uma centelha de desculpabilidade. Quando, por exemplo, disse aos seus seguidores na manhã de 6 de janeiro para “lutarem como o inferno”, ou de terem de mostrar “força para reconquistar o país”, mas de uma forma “pacífica”. Ou quando o Departamento de Justiça se preparava para tornar público o documento que justificou a busca de Mar-a-Lago para os documentos secretos, o New York Times reportou que o ex-presidente enviara uma nota ao Procurador-Geral Garland que o país se encontrava a “arder”, e o que se podia fazer “para baixar a temperatura”. Bela democracia que tem aí…. Totalmente descontrolado, com apelos diretos ao culto QAnon, ameaças às autoridades, demonização dos adversários, e com o precedente recente de ter juntado uma multidão pronta para invadir a sede de poder dos Estados Unidos, e não ter (ainda) pago um preço por isso, Donald Trump pede agora o impensável: violência nas ruas pelos seus seguidores, cada vez mais radicalizados e com acesso fácil a armas de guerra. A pergunta que se impõem é: o que pode fazer Portugal, a União Europeia, e o resto do mundo, quando aquela que é a maior potencia mundial estiver em convulsão à nossa frente.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR