Foi uma das primeiras medidas que Jair Bolsonaro anunciou logo após a sua eleição: a liberalização do uso e porte de armas, Uma medida apresentada como necessária ao combate à criminalidade e até à «liberdade de um povo», com uma retórica semelhante à que de há muito se ouve nos Estados Unidos. Para além dessa medida, o novo presidente brasileiro já se tem manifestado favorável ao uso mais fácil e frequente de armas letais por agentes policiais no combate à criminalidade (sem grandes escrúpulos de atirar a matar).

Os grupos de deputados que poderão garantir o apoio a Bolsonaro têm sido identificados com três palavras: Bíblia (a bancada de deputados evangélicos), boi (os representantes da agro-indústria) e bala (os que defendem uma política securitária como a que facilita o uso de armas letais por particulares e agentes policiais).

É um logro pensar que a difusão do uso e porte de armas pela população reduz a criminalidade. O exemplo dos Estados Unidos é bem eloquente a esse respeito; bastará comparar os índices de criminalidade desse país com os nossos, ou com os da generalidade dos países europeus. Aí, um vasto movimento, a que também se associam os bispos católicos, vem alertando para as consequências de uma legislação permissiva em relação ao uso e porte de armas, uma legislação cuja vigência é em grande parte influenciada (há que reconhecê-lo) pelo poderoso lóbi dos comerciantes do ramo. A periódica ocorrência de trágicos tiroteios é uma dessas consequências. Na verdade, nada pode assegurar que as armas letais espalhadas entre a população sirvam apenas para dissuadir e não venham a ser usadas. Nem que sejam usadas apenas em legítima defesa e não antes como instrumento de agressão, por agentes do crime, precisamente.

Há quem diga, para justificar a difusão da posse de armas, que não são as armas em si mesmas que são perigosas, mas as pessoas que as possam utilizar. Quando oiço esta argumentação, vem-me à memória um caso com que me deparei no início da minha carreira de juiz. Uma simples discussão de trânsito que desembocou num homicídio e que, não fora a possibilidade de acesso a uma arma, não teria passado de um par de socos ou bofetadas. O acesso a essa arma num momento de exaltação transformou uma pessoa pacífica num homicida, profundamente arrependido e que até veio a entregar-se às autoridades. Não, as armas são perigosas por si só e a sua difusão não torna a sociedade mais segura e tranquila, antes pelo contrário.

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A vida humana é merecedora de proteção em qualquer circunstância, até mesmo a de um criminoso, como reafirmou recentemente o Papa Francisco ao reprovar de forma categórica a pena de morte. Pode ser legítimo aceitar, como consequência não diretamente querida, a morte de um agressor quando se atua em legítima defesa, para proteger a vida do próprio ou de outrem. Mas as condições dessa legitimidade são estritas, sujeitas a critérios de necessidade e proporcionalidade. Os meios mais gravosos e letais devem ser utilizados apenas se necessários e em último recurso. E para quem mais preze a vida humana, também a de um agressor, podem sê-lo para defesa da vida da vítima, não de simples bens patrimoniais. Quem assim pense, com base na ética e no direito, não pode deixar de ficar apreensivo quando com ligeireza se aceita, ou até se incentiva, que fácil ou sistematicamente se atire a matar para combater a criminalidade. Porque, num Estado de Direito, os critérios da polícia e dos tribunais não podem ser os mesmos dos criminosos e os fins não justificam os meios.

As raízes da criminalidade são demasiado complexas e é, no mínimo, simplista pensar que se enfrentam apenas com o endurecimento de penas, com o encarceramento sistemático, com a difusão de armas entre a população ou atirando a matar.

Sem que a pobreza e desigualdade possam justificar a prática de crimes e sem que se ignore a função própria do sistema penal, as políticas sociais de combate à pobreza e à desigualdade não podem ser esquecidas quando se pretende combater a criminalidade. A insegurança da sociedade brasileira não é alheia à persistência dessa pobreza e dessa desigualdade em níveis que contrastam com a da generalidade dos países europeus, com índices de criminalidade inferiores.

A bancada de deputados evangélicos que apoia Bolsonaro enaltece a sua postura de oposição ao aborto, tal como muitos dos seus eleitores católicos e evangélicos, que prezam a vida humana na sua fase inicial, de suprema vulnerabilidade. Em muitos países, para políticos moderados, de esquerda, centro e direita, a liberalização do aborto já é aceite como algo de indiscutível ou irreversível. Oferecem, assim, trunfos eleitorais a políticos como Trump e Bolsonaro, que, quiçá de forma oportunista e inautêntica (porque nem sempre no passado se distinguiram pela oposição ao aborto), se aproveitam do vazio assim criado assumindo-se como arautos da defesa da vida pré-natal.

Importa, por isso, denunciar a incoerência de quem defende a vida na sua fase inicial, mas com ligeireza a despreza noutras fases (sendo que a inversa também é verdadeira), mesmo que seja em nome do combate à criminalidade, aceitando facilmente que se possa atirar a matar.

Bíblia e bala não combinam muito bem. Da Bíblia vem o mandamento não matarás, não certamente o de que facilmente se pode atirar a matar.

Afirmar que se coloca Deus acima de todos envolve uma responsabilidade que exige coerência. Reduzir essa afirmação a um slogan de propaganda é uma profanação que viola o mandamento bíblico de não usar o Santo Nome de Deus em vão.

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz