Expiro e inspiro pausadamente. Dentro deste fato vivo num país tropical, delimitado pela latitude das fibras que se entretecem nos extremos da touca e dos cobre-botas. A temperatura é farta, a amplitude térmica parca, o índice pluviométrico copioso e a humidade do ar exuberante. Quando, por um bom período de tempo, me exilo neste ponto do mapa-múndi e se vedam as fronteiras, a minha visão assume laivos caleidoscópicos. E então, tal como agora, creio ver diante de mim palmeiras viçosas  que se meneiam como pêndulos ao longo do corredor, suculentas bananas e goiabas atapetando o solo, araras e papagaios de plumagem policromática crocitando epopeias empoleirados nas cabeceiras, grãos de café e chocolate encrustados na espessura das ombreiras das portas e paredes que refulgem como pepitas em matizes vibrantes e eléctricas. Ouço acordes de guitarra e batuques de tambor que aplacam tempestades que pairam, sempre, no horizonte. A voz delicada fragmenta-me esta quimera e indaga do lado limpo do corredor qual é a frequência respiratória do doente. Preciso que me quantifiquem tempo enquanto eu quantifico ciclos respiratórios. Sempre fui um cronopata (nunca um cronópio, sempre um Esperança, à boa maneira de Cortázar). Procuro espreitar por entre os esparsos fragmentos do policarbonato dos óculos de protecção (escotilha e periscópio para as geografias vizinhas) que o vapor de água ainda não embaciou. Cronometram-me um minuto do lado impoluto, enquanto eu vou contando ciclos respiratórios neste. Respondo, compassadamente, que são vinte e seis ciclos por minuto e que o doente está polipneico. Coloco o oxímetro no segundo dedo da mão direita do doente e verifico que a saturação periférica do oxigénio caiu para um valor abaixo daquele que preconizámos como alvo. Ausculto, preparo a gasimetria, palpo e sinto o caudal do regato de sangue que pulsa no leito da artéria e colho a amostra. Solicito terapêutica, rodo botões e aumento aporte de oxigénio. Fico aqui, não tenho melhor sítio para estar. A voz delicada notifica-me de valores de pH, pO2, pCO2 e P/F e compreendo que, possivelmente, nesta geografia será necessário, a breve trecho, um laringoscópio, e, subsequentemente, um ventilador. O calor é tórrido, a densidade atmosférica asfixiante, e a pluviosidade esmagadora. Ouço o som puro das primeiras notas de Deux Arabesques. Também este timbre aplaca tempestades que já pairam sobre nós. Hoje toca Debussy neste humilde palco, hoje é ele que me purifica e amaina a mente para que esta agite condignamente a matéria.

Desperto. Não raras vezes tenho sonhado com cenas semelhantes, sempre passadas no contexto do cumprimento da minha prática clínica. Um mergulho no subconsciente, um portal de comunicação com outra dimensão, um papel epifânico (à boa maneira de uma epopeia clássica), ou uma prolepse hipotética – sempre me desassossegou a interpretação dos meus sonhos (obra em permanente construção, sempre inacabada e aberta).

Revolvo o cabelo com os meus dedos esguios e longilíneos, e aparto a brancura dos lençóis que me cobrem. Experimento a temperatura do soalho e caminho até à porta envidraçada que abre para o pátio exterior. Também neste país e nesta latitude o índice pluviométrico é exuberante. Pendem cordões de água do céu pincelado por tonalidades plúmbeas. Recordo-me que hoje não terei de me deslocar até ao meu biossistema de eleição, o Hospital. O sono cumpriu parcialmente a sua função higiénica. Suspeito que existam memórias por consolidar, e experiências por catalogar.

Hoje é o dia do meu aniversário. À meia noite trouxe-me a Sofia um bolo de chocolate e cenoura, telefonaram-me os meus pais (como é hábito e tradição entre nós) e também as minhas avós. Se a memória não me atraiçoa não houve velas, os parabéns foram cantados por mim e pela Sofia (não quis deixá-la só nessa tarefa), bebemos um chá simples e juntámos uma bola de gelado de baunilha ao bolo que, entretanto, aquecemos (são múltiplas e variadas as estratégias de acalentar a alma). Alegro-me e esboço um sorriso. Todo o carinho cabe na simplicidade. Exulto duplamente ao lembrar-me que verei, finalmente, os meus pais e a minha avó paterna. Evadir-me-ei, temporariamente, do meu exílio voluntário e vogarei pelas correntes desta cidade até um porto afectivamente tão distante e cartograficamente tão próximo. E a Sofia vem comigo.

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Durante a viagem contacto os meus pais solicitando que estejam equipados aquando da nossa chegada. Inquisitivo, confirmo que almoçaremos em divisões distintas com vista uns para os outros. Garanto que a loiça será lavada por nós e que existirão luvas supranumerárias para uso próprio quando se justificar. Aproveito e encarno o anjo da guarda que os perscruta todos os dias com as mesmas questões, e afiro hora de última medição de temperatura corporal, valor em graus Celsius de temperatura corporal, existência de queixas de tosse seca, falta de ar ou cansaço para pequenos esforços, sintomas gastrointestinais, anosmia ou ageusia. Obtenho respostas satisfatórias. Espreito pelo vidro da janela (escotilha e periscópio para as geografias vizinhas) e acelero suavemente.

Encontro um saco translúcido suspenso do puxador da porta de casa. No seu interior adivinham-se dois pares de luvas cor de pérola. Um para cada um de nós. Compomos as máscaras manobrando agilmente os elásticos que as suportam, cobrimos as mãos com gel desinfectante, friccionamo-las uma contra a outra, e calçamos as luvas. De lá de dentro o movimento é sentido e a porta abre-se.

Ali estão eles, os meus pais. Sorridentes e bem-humorados, como sempre aprumados e perfumados, com a casa num brinco. Não há cenário que me pacifique mais a alma e me vitamine mais o espírito.

Tudo está no seu lugar na sala de jantar: a toalha, de um alvor impoluto, espraiada sobre a madeira enegrecida, o centro de mesa forrado de musgo, polvilhado por flores (da preferência específica da minha mãe), ladeado pelos candelabros no cimo dos quais não dança a chama que habitualmente brota das velas aromáticas, as argolas que resplandecem em tons argênteos envolvendo o tecido dos guardanapos, e a travessa com carne fumegante, esparregado e arroz (obra do meu pai). As janelas que permitem desembocar no terraço estão abertas de par em par apesar do índice pluviométrico desta latitude. A mesa do terraço, abrigada, está também posta e voltada para a mesa da sala para que possamos comer frente a frente, em divisões diferentes, conservando uma distância segura quando desabitarmos as máscaras do rosto e as luvas das mãos. Reconforta-me saber que os tempos de hoje não alteram os hábitos de sempre e o perfeccionismo dos meus pais se mantém intacto.

Sentamo-nos do lado de fora enquanto que os meus pais assumem os seus lugares do lado de dentro. Deixamos que a conversa se espraie e flua indefinidamente (já vos disse que sou um cronopata?), permitindo-nos serpentear entre temas da actualidade, experiências pessoais e preocupações. Concomitantemente, corrijo detalhes higiénicos, repito conselhos à exaustão e exaspero com incumprimentos pontuais da parafernália de regras de assepsia actualmente em vigor.

Degustamos, a priori, uma fatia de bolo de chocolate, previamente talhada e cuidadosamente posicionada com dedos enluvados de pianista e tiques de curador em cada prato. Há que saber saborear e digerir uma obra de arte.

Cantamos, a posteriori, os parabéns (junto-me novamente) no terraço. Não há velas, nem bolo comum, mas tenho a alma mais acalentada do que nunca.

A Sofia preparou um vídeo em que compilou, para a posteridade, mensagens e testemunhos dos meus pais, das minhas avós, dos seus pais e de muitos dos meus amigos mais próximos. Vemo-lo na televisão, em pontas opostas da sala. E emociono-me. Contidamente, emociono-me.

Despedimo-nos com um aceno de mão, promessas de retorno precoce e verbalizações de esperança e coragem. Deixo os meus pais à porta com a certeza de que tudo está no seu lugar.

Sinto o motor do carro a ronronar. Sinto sempre necessito de acelerar, mesmo que suavemente. No habitáculo sou assaltado pelo travo agridoce da adolescência e recordo-me de me sentir não raras vezes aterrorizado perante a quantidade de tarefas pelas quais tinha de dividir a minha atenção. Nessa altura lia, repetida e invariavelmente, excertos de um livro que passei a idolatrar com extremo fervor – Contos (de Gabriel García Marquéz). A leitura tinha o condão de me sossegar. O que mais me espantava era a capacidade ímpar de Gabo fazer oscilar o pêndulo entre o real e o mágico, e de esboçar e insuflar personagens únicas com uma facilidade prodigiosa. Sempre me foi particularmente prazeroso sopesar o volumoso tomo publicado pela Dom Quixote. Creio que, de entre a ampla galeria de personagens que pululavam por esses contos, possa, no dia de hoje, incorporar algo de Frau Frida que se alugava para sonhar (e que tanto invejo, pois teve o próprio Gabriel García Marquéz e Pablo Neruda como interlocutores), mas essencialmente de Billy Sanchéz que, com tenacidade e persistência, procurou preservar a vida de quem lhe era querido, conforme é retratado num conto magistral intitulado “O rasto do teu sangue na neve”.

Meus queridos, creiam-me, sou vosso filho, neto e namorado, mas sou também o vosso Billy, e não imaginam o quanto isso me orgulha.

E reparem, partilharmos algo: a saudade. Aqui estou, terminando o meu dia de aniversário, longe de vós, sentado numa cadeira de pano num pátio que (ainda) me é estranho. Contemplo a vida interior dos prédios, que se derrama através das janelas para este espaço comum que não é mais do que uma colectânea de múltiplos pátios traseiros. Deixo que os acordes da guitarra e a voz de Luís Severo (que integrou com duas músicas a banda sonora do vídeo composto pela Sofia, que revejo pela enésima vez) me entrem pelos ouvidos e musicalizem a saudade – “Canta, voz, canta / Dá-me uma esperança nesta cidade / Se o medo já se alevanta / Canta de amor e verdade”. Amanhã aí estarei para ser o vosso Billy. E serei o homem mais feliz desta ocidental praia Lusitana.