Saíram no dia 1 de outubro, os resultados de mais um concurso de bolsas de doutoramento FCT, prevendo a atribuição de 1350 bolsas entre os 3797 candidatos, ou seja, uma taxa de sucesso da ordem dos 36%. Até aqui nada de novo, já que entre 1998 e 2018 (ver gráfico) estas taxas de aprovação oscilaram entre 59% (1998) e 13% (2013), mantendo-se cerca dos 35% nos últimos anos.

Gráfico da evolução a taxa de bolsas de doutoramento FCT atribuídas face ao número de candidaturas.

No entanto, este concurso decorreu entre 2 de março e 31 de março de 2020 (depois prorrogado até 28 de abril de 2020), ou seja, em plena pandemia, incluindo o período de confinamento obrigatório (ver em baixo “Cronologia da pandemia”). Devido a esta cronologia inerente à pandemia e ao confinamento obrigatório (mas não só), este concurso teve algumas idiossincrasias que vale a pena trazer ao conhecimento público. Na realidade, neste concurso, a FCT passou uma “rasteira” aos candidatos.

O aviso de abertura do concurso indicava que a submissão dos certificados de habilitações era “relevante, mas de apresentação opcional“. Por outro lado, o mesmo aviso dizia quanto aos certificados de habilitações: “c) (…), embora a sua não submissão tenha consequência na avaliação do critério de avaliação A – Mérito do Candidato (ver ponto 5.1)“. Neste ponto 5.1), dizia: “Ao subcritério A1 será atribuída a classificação de zero valores (A1 = 0) em todos os casos que não se incluam nas situações previstas na Tabela 1. Identificam-se alguns exemplos: (…)” Um destes “exemplos” é “a) Quando não sejam submetidos, em sede de candidatura, certificados de habilitações comprovativos nem do grau de licenciado nem do grau de mestre“.

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Esclareçamos, havia três critérios de avaliação (Mérito do Candidato – 40%; Mérito do Plano de Trabalhos – 40%; Mérito das Condições de Acolhimento – 20%). No critério A, um dos 3 subcritérios, o Percurso Académico (que reflete as classificações dos graus académicos) tinha uma ponderação de 50% do critério A e, consequentemente, 20% da nota final, ficando em clara desvantagem.

Não poderia a FCT ter flexibilizado a entrega dos certificados para uma data posterior (ou em fase de assinatura do contrato de bolsa), sobretudo, tendo em conta as dificuldades inerentes à pandemia na obtenção dos certificados, com as secretarias das universidades fechadas ou com funcionamento precário? Por outro lado, se, de facto, era indispensável ter os certificados submetidos para o candidato ter uma classificação no subcritério “A1.“, porque é que o formulário não lançava um alerta quando se fazia a verificação da candidatura antes da sua submissão definitiva?

Pior, qual a razão de inserir no aviso a frase “relevante, mas de apresentação opcional“? Esta simples frase levou vários candidatos a assumirem que a submissão dos certificados era opcional durante a fase de submissão, mas que (para aplicação do critério em 5.1) seria também possível submeter os certificados após a lacragem da candidatura (como acontece para alguma documentação em outros concursos FCT).

Certo é, que os candidatos têm a obrigação de ler cuidadosamente o regulamento! Mas, de facto, são incompreensíveis as razões que levaram a FCT a lançar a confusão (a tal “rasteira“?), ao incluir a indicação que a submissão dos Certificados era “opcional”. A contradição é evidente!

Nesse mesmo sentido, podemos então assumir que tudo é opcional, daí decorrendo, no entanto, a ressalva de “o candidato não se importar de ter 0 a tudo!

Independentemente da confusão gerada por estas contradições do aviso, e mesmo concedendo que a interpretação dos candidatos não foi a correta, esperar-se-ia que a FCT tivesse, em ano de pandemia, alguma flexibilização deste critério, tendo em conta as dificuldades na obtenção dos certificados (e a recusa no prolongamento dos prazos do concurso, ver “Cronologia da pandemia”) aceitando, p.ex., a submissão dos certificados em fase de assinatura de contrato.

Com efeito, terá sido esta a interpretação (ingénua, convenhamos…) por alguns candidatos da frase “relevante mas opcional”, dadas as dificuldades em obter atempadamente os certificados de habilitações nas secretarias das instituições de ensino superior em fase de confinamento (ver “Cronologia da pandemia”).

Aceito que a FCT contraponha que “essas eram as regras” e é certo que este concurso não foi o primeiro em que estas regras foram aplicadas! Mas também não houve outro concurso a decorrer em período de confinamento obrigatório!

Esqueçamos porém, este concurso e respetivas vicissitudes e centremo-nos “nas regras”. Quais as razões que levam a FCT a exigir os certificados em fase de candidatura? (Embora como “exigência opcional”)! Será que prevalece o princípio (tão burocraticamente português) de que todo o cidadão é culpado/mentiroso até prova do contrário?

Na realidade, o que os candidatos a futuros cientistas esperam da avaliação das suas candidaturas é que sejam considerados (de acordo com os critérios da própria FCT): 1) o seu mérito académico (as suas classificações nos cursos do seu percurso académico) e outros dados do seu CV (publicações, apresentações em congressos, participação em projetos, etc); 2) o “valor científico” do plano de trabalhos que se propõem realizar nos próximos 3-4 anos; e 3) a qualidade das condições de trabalho na instituição de acolhimento (CV do orientador, qualidade dos laboratórios se for o caso, etc).

No entanto, dado o que é explícito no ponto 5.1, pergunta-se se o mérito do candidato é avaliado pela sua capacidade em submeter atempadamente certificados de habilitações (mesmo em tempo de pandemia), ou pelo mérito do seu desempenho académico? Ou pela sua capacidade em ultrapassar “rasteiras”…

É, no entanto, preciso chamar a atenção pública para estas “rasteiras” que, de facto, só levam a que os mais jovens candidatos a cientistas comecem a desacreditar no sistema que os avalia. Com mais duas ou três destas vão para países que os acarinham e… Portugal, perde!

Cronologia da pandemia:

12 de março – O Governo decide que todas as escolas de todos os graus de ensino suspendam todas as atividades presenciais.

13 de março – Os funcionários públicos são instados a ficar em casa em regime de teletrabalho. A FCT anuncia que devido à pandemia, há um prolongamento do prazo para submissão das candidaturas a bolsas de doutoramento, sendo o novo prazo para submissão 28 de abril. No seu comunicado oficial, informa-se que “a FCT procura desta forma responder às solicitações enviadas pelos candidatos, que nas suas exposições manifestaram constrangimentos para a concretização dos processos, nomeadamente ao nível de tempo e de acesso à documentação necessária para submeterem as candidaturas“. Na mesma data, é também divulgada a prorrogação da data para entrega da declaração de compromisso no âmbito do Concurso de Projetos. Porém, nada é dito quanto à entrega da documentação para as candidaturas a bolsa de doutoramento.

18 de março – O Presidente da República decreta o estado de emergência por 15 dias; o estado de emergência contempla o confinamento obrigatório e restrições à circulação na via pública, sendo a desobediência considerada crime que pode levar à prisão.

19 de março – O Primeiro-Ministro revela as medidas e regras para cumprir o estado de emergência. A regra é que os estabelecimentos com atendimento público devem encerrar e o teletrabalho é generalizado, sendo a proposta de lei do Governo com as medidas excecionais promulgada de imediato pelo Presidente da República.

1 de abril – O Presidente da República propõe ao Parlamento a renovação do estado de emergência por mais 15 dias e o Governo dá parecer favorável à proposta.

2 de abril – A Assembleia da República aprova o decreto do Presidente da República que prolonga o estado de emergência até ao final do dia 17 de abril.

16 de abril – O Presidente da República propõe ao Parlamento a segunda prorrogação do estado de emergência, para vigorar até 2 de maio. O Parlamento aprova o decreto.

24 de abril – O Primeiro Ministro anuncia que serão proibidas as deslocações entre concelhos no fim de semana prolongado de 1 a 3 de maio.

28 de abril – A FCT – apoiada pelo Ministro da Ciência, Manuel Heitor – recusa aceder à petição online lançada por investigadores, sindicatos (Fenprof, Sindicato Ensino Superior) e associação de bolseiros (ABIC) para alargar em três semanas o prazo para entrega de candidaturas a projetos de investigação e bolsas de doutoramento FCT.

O ministro justifica com o facto dos painéis de avaliadores (dos projetos de investigação) já estarem contratados, o que dificultava o adiamento. Não é dada uma justificação para o não adiamento do prazo do concurso a bolsas de doutoramento FCT (nem da respetiva documentação), à exceção de que o adiamento inviabilizaria a avaliação estar terminada até final de 2020. Como tal, o prazo das candidaturas a bolsas de doutoramento termina neste dia (28 de abril).

As instituições que lançaram a petição consideram ilegal a decisão da FCT à luz da Lei nº 1-A/2020 (pela qual o Governo estabeleceu as medidas excecionais e temporárias de resposta à situação provocada pela Covid-19).

Neste mesmo dia (28 de abril), o Presidente da República anuncia que o estado de emergência terminará à meia noite de dia 02 de maio.