Não pretendia escrever sobre as eleições no Brasil no atual contexto, mas não resisti à pérola de falso moralismo de David Dinis. O texto faz parte de um tsunami irracional que invadiu o espaço de opinião publicada em Portugal, incluindo abaixo-assinados de iluminados, reportagens ridículas nos noticiários da TSF e absurdos do género. Para perceber tanta sanha colérica basta arrumar algumas ideias.

Sobre o racismo que nos garantem arruinar o futuro do Brasil caso o candidato do PSL vença, mais não é do que a mania de importar soluções de problemas que não se viveram n própria casa e, naturalmente, o ajuste chegará mais cedo ou mais tarde. Sabemos que os ativismos sociais brasileiros andaram nas décadas recentes a copiar modas norte-americanas ou de outro tipo de curas de experiências históricas de segregação racial vividas noutros lugares e épocas como da Alemanha de Hitler ou na África do Sul do apartheid, mas sem que a sociedade brasileira tivesse passado por uma qualquer experiência histórica semelhante. O transplante tem sido de tal modo artificial nos seus absurdos que faz com que o discurso mais ligado à terra pode ser, apesar de tudo, o de Jair Messias Bolsonaro.

Para nos continuarem a fazer de parvos prevejo a certeza de se exportar para o Brasil de agora em diante, com nota de encomenda do Partido dos Trabalhadores (PT), o fascismo europeu ou, pior, o nazismo alemão como se a América do Sul do século XXI fosse a Europa da primeira metade do século XX. A prova está nos livros! Apesar do transplante de tal cadáver garantem-nos que o neurótico é o Bolsonaro. Se é para nos fazerem a todos de doidos talvez consigam. E não seria original.

Outra piada de mentes intelectuais juvenis é a de nunca admitirem a hipótese contrária à que defendem, apesar da contrária ser muitas vezes plausível face a contextos complexos como são as sociedades em cenários do passado, quanto mais quando se imagina apenas o que poderá hipotética e eventualmente vir a acontecer nos próximos anos no Brasil. Apesar disso, não falta a certeza da ignorância dogmática, tal como em meados dos anos setenta nos garantiam que a Europa sem as colónias africanas era inviável e estas, uma vez independentes e progressistas, caminhariam rumo ao paraíso. Pouco ou nada se aprendeu em quase meio século. É necessário mais?

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Na eventualidade de vencer as eleições brasileiras de domingo, a governação de Jair Messias Bolsonaro pode resultar em tudo o que dizem dele, como no seu exato inverso. O mais certo é que não seja nem uma coisa nem outra. Talvez a única certeza que temos é que, muitíssimo mais do que o seu opositor, Bolsonaro garantirá alguma renovação do sistema político. Mesmo não tendo experiência de vida no país, só isso basta para eu não hesitar um segundo em lhe oferecer o meu voto (mas ainda bem que não voto, o Brasil é propriedade exclusiva dos brasileiros). Num país com sessenta mil homicídios por ano basta que esse número se reduza para que o eventual novo presidente possa ser campeão do humanismo. Claro que a redução dos homicídios e da insegurança não é tudo, mas no atual contexto ainda assim é muito relevante.

Pelo que fui referindo, importa ter presente que as sociedades podem ser vítimas das suas neuroses quando sobrevalorizam o poder dos polícias morais que passam a híper regular, e de forma punitiva, o modo como os indivíduos comuns gerem as suas relações habituais com os outros, situações em que os significados dos discursos (o que se diz) tendem a ser grosseiramente equiparados aos significados das práticas (o que se faz), visão homogeneizadora da condição humana de pendor totalitário que anula a complexidade do sentido da vida. Até porque nunca se comprovou ser possível predizer comportamentos (o que se faz) através da verbalização de atitudes (o que se diz), e quanto mais nos distanciamos dos espaços privados para os públicos maior as dissonâncias e maiores as possibilidades de os resultados serem paradoxais, até inversos.

Portanto, é hoje muitíssimo mais fácil encontrar tentações totalitárias nos Davides Dinises do que nos milhões de apoiantes de Jair Bolsonaro. De resto, a possibilidade de gerar neuroses sociais tem bastas provas empíricas no contrário, naqueles que nos discursos prometem paraísos e na prática conduzem a infernos sociais e, nesse caso, os brasileiros ainda terão muito que cobrar ao PT, perca ou vença este a eleição de domingo.

Outra patranha intelectual saturante é a de ver gente adulta comparar um governo que teve um ciclo, que espero que termine, com um governo que apenas podemos imaginar como vai ser. Esse exercício pode evidentemente ser feito, mas é apenas sério se os seus autores assumirem a sua natureza especulativa e não certezas de feira demasiado grosseiras como as que vemos no espaço publicado, intelectual e académico português, com ajuda de animadores de feira como Donizete Rodrigues ou a pessoa boa e lúcida Ruth Manus.

Existe um coro que faz por ignorar que a alteração do sentido de voto para o inabitual é sempre um sintoma de as sociedades estarem a reagir a pressões e recalcamentos impostos pelos seus poderes tutelares. Estes são sempre exímios em abusar das suas populações, no passado eram sobretudo abusos físicos e hoje são sobretudo abusos psicológicos ou identitários, mesmo que seja difícil defini-los. Nesse domínio, é preciso ser extraordinariamente ignorante para não admitir que o crime quando transita da periferia de um dado sistema social para o seu âmago é uma fonte de dor psicológica coletiva suficiente para forçar as sociedades a reagirem. Bem pior seria se as últimas persistissem abúlicas. Felizmente há gente sentida no Brasil. O padecimento dos africanos é muitíssimo pior e espero que vejam na terapia brasileira como modelo.

Para clarificar o assunto, durante a dominação colonial europeia em África o poder do estado central foi capaz de apresentar estradas, pontes, aeroportos, mercados, entre outras obras públicas como progressos materiais que lhe permitiram legitimar-se junto dos colonos europeus, junto das populações africanas colonizadas, junto das metrópoles europeias e dos países e economias aliados ou concorrentes ignorando ou omitindo que, para alcançar tais progressos materiais, sem dúvida historicamente significativos na transformação da civilização material africana existente, houve custos humanos pesados. Alguns dos recrutados para o trabalho forçado ou para o trabalho assalariado na época colonial morreram, outras ficaram estropiados, doentes ou inválidas para o resto das suas vidas por falta de cuidados do estado e respetivos agentes, incluindo africanos, na proteção da sua integridade física.

Hoje, os patamares mínimos humanamente aceitáveis progrediram e passaram a incluir, além da proteção da integridade física, também a proteção da integridade psicológica, o que obriga à exclusão do que antecipadamente se sabe que espoleta a dor psicológica. Porém, na prática o estado apenas saiu de modo parcial da era anterior quando continua a investir para atingir os seus propósitos. Isso nos países ditos avançados onde as políticas públicas têm proporcionado progressos sociais notáveis, tal como na era colonial ocorreram progressos materiais não menos notáveis e que a África pós-colonial pôde perfilhar. O detalhe é o de se ultrapassarem de forma sistemática os limites físicos (antes) e os limites psicológicos (agora) de indivíduos que servem os propósitos do bondoso estado social (polícias, professores, médicos, enfermeiros, auxiliares de ação educativa ou social, entre outros), ou seja, a gestão mental das sociedades pelos seus poderes tutelares suscita dúvidas empiricamente sustentadas um pouco por todo o mundo. E não duvido que isso arraste processos de socialização dos sofrimentos.

Transporte-se isso para um país como o Brasil atual onde a obesidade do Estado agravada pelo PT não apenas vai martirizando aqueles que o servem – através de salários baixos e de condições penosas de exercício das suas profissões –, como a população beneficiária sentiu no quotidiano o agravamento da insegurança ou a (grave) falta de qualidade de muitos de serviços prestados pelo estado em que o PT promete insistir. Se isso não é uma relação profundamente patológica entre a sociedade e o poder tutelar que a controla, então o mundo é um paraíso e nem vale a pena haver eleições.

De resto, quando está em curso uma renovação histórica em que têm de ser as populações alertar por si mesmas contra estados transformados em personalidade narcísicas destrutivas (da sociedade, da economia, das instituições, da segurança, nas Américas ou na Europa), no topo da pirâmide as elites globalistas de sempre continuam refasteladas a ditar sentenças condenatórias. O que dizer camarada David Dinis?