Sem surpresas, mas com justificada preocupação, o mundo viu ontem Jair Bolsonaro, um obscuro político enterrado no Congresso durante décadas, ganhar confortavelmente as eleições presidenciais.

Já muita tinta correu sobre o assunto. Portugal viveu estas eleições quase como se fossem suas (o que indicia que a polarização social, aparentemente, não é só um problema dos outros) e ouviu-se quase tudo sobre Bolsonaro. Fernando Haddad, aliás, foi completamente relegado para segundo plano, quase como se não fizesse parte do escrutínio. Nos dias antes das eleições transformou-se numa espécie de bastião da manutenção da democracia. Mas pouco mais.

As razões da eleição de Bolsonaro são várias, principalmente três: o crescimento exponencial do crime violento no Brasil, foram assassinadas cerca de 64 mil pessoas em 2017; o empobrecimento de uma população já empobrecida, mas que viveu alguns anos convicta de que poderia ascender socialmente através da redistribuição iniciada no primeiro mandato de Lula da Silva, que começou a desmoronar ainda com Dilma Rouseff antes da destituição; e uma enorme desilusão com o PT, que provocou um voto de protesto muito elevado.

Os brasileiros sabiam que havia corrupção no país. Sabiam que o sistema parlamentar, dominado pelo Centrão, e que a dependência da economia do aval do estado são incentivos quase irresistíveis para um país onde a corrupção é a regra e não a exceção. Mas o Partido dos Trabalhadores, com origens nas raízes dos mais pobres do Brasil, teria sido o único que poderia ter tentado romper este ciclo. Lula apresentou-se como uma espécie de campeão dos pobres e acabou preso por ser tão corrupto como qualquer outro. Por muito que os mais fiéis falem de “golpe” da justiça, custa-me a crer que não tenha havido uma desilusão profunda, depois da esperança, explanada na popularidade de Lula, ter atingido níveis altíssimos.

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Assim, Haddad, que mais não é que um holograma de Lula, como já escrevi aqui noutra ocasião, perde as eleições. Mas essa derrota também se deve a Jair Bolsonaro que entra diretamente para a lista dos populistas perigosos que de quase-desconhecido passa a presidente. A fórmula já se tornou tão batida que nem vale a pena descrevê-la com grande profundidade. Um homem politicamente incorreto, sem grande respeito pela verdade dos factos e sem escrúpulos relativamente ao teor incendiário das suas afirmações atropela tudo e todos, mas é capaz de interpretar os anseios dos eleitores, especialmente no que diz respeito à segurança, e dizer exatamente o que os brasileiros querem ouvir. E ajudado por uma facada captada pelas câmaras de televisão, arrebata 55 por cento dos votos. É o novo presidente do Brasil.

Esta postura de Jair Bolsonaro tem-lhe valido uma série de comparações com Donald Trump, que ele próprio aprecia e usa a seu favor. Diz que é vítima da imprensa como o presidente americano, usa as redes sociais para a ultrapassar sem contraditório. E afirma que Trump é o seu modelo político.

Mas se as semelhanças aparentes podem fazer-nos cair na tentação da comparação fácil, há três diferenças fundamentais. Duas delas tornam Bolsonaro muito mais perigoso que Donald Trump. O presidente brasileiro (primeira diferença) é assumidamente anti-democrata e (a segunda diferença) parece disposto a implementar no Brasil uma espécie de lei marcial permanente. A terceira diferença, é que, do ponto de vista económico, onde Trump é protecionista, Bolsonaro pôs o programa económico nas mãos de Paulo Guedes, um discípulo da escola de Chicago, que, como se sabe, professa o mercado livre e desregulado quase como uma religião. Por outras palavras, Trump e Bolsonaro até podem ter semelhanças nos métodos de chegar ao poder, na superfície politicamente incorreta e até insultuosa como se comportam em público. Mas na substância são muito, mas muito, diferentes.

Até ao momento, decorridos dois anos de presidência, Donald Trump nada fez para mudar as instituições norte-americanas. Pode não ser um liberal, mas respeita a democracia e os checks and balances do país – que aliás, nunca pôs em questão, nem em campanha eleitoral. Bolsonaro não esconde que sente uma grande nostalgia pela ditadura militar (1964-1985) e que está disposto a arregaçar as mangas para caminhar nesse sentido.

Para isso, terá que se começar por pôr o Brasil nos eixos: a polícia pode atirar a matar, as cadeias ficarão cheias, e os cidadãos devem ter pistolas e metralhadoras para se auto-defenderem. As “mordomias” acabaram e o país vai ser “varrido”. Ainda que estas palavras sejam pouco concretas, se forem coloridas com ideias defendidas ao longo dos anos, como a esterilização dos pobres, o uso de violência descontrolada contra eventuais criminosos, ou a explicita xenofobia relativa a vários sectores sociais, não podem deixar ninguém descansado.

Finalmente, as propostas económicas vão no sentido da liberalização abrupta e desregulada da economia, acompanhada pela privatização de grande parte das empresas públicas ou com capitais públicos, que no Brasil, são a esmagadora maioria. Estas medidas, abafadas pelo receio de que o Brasil se torne uma ditadura, têm consequências difíceis de prever (como qualquer mudança radical na economia). Mas uma coisa é certa: está nos antípodas dos Estados Unidos da América nesta matéria.

E agora? Há dois cenários possíveis. Ou Bolsonaro suaviza a sua radicalização e vai-se adaptando à democracia de que claramente não gosta, o que parece pouco provável, ou fará o que tantos outros populistas, nomeadamente sul-americanos têm vindo a fazer: vão, aos poucos transformando as instituições de forma a acumular poder, em si e nos seus fiéis. Já nos começamos a convencer que as democracias morrem, de facto, lentamente.

Recai, daqui para a frente, uma enorme responsabilidade nas instituições da jovem democracia brasileira. A presidência do Brasil não se move sozinha. O Congresso, a Justiça, os Governos Estaduais, a imprensa e a opinião pública estão alerta e não podem baixar os braços. O regime precisa de todos para não perder a sua relevância. Pode não se gostar de Donald Trump. Pode criticar-se com toda a legitimidade o seu estilo político. Pode (e deve) criticar-se a sua política externa. Mas a democracia americana não está em risco. E a democracia brasileira está.