Faço parte do escasso grupo de portugueses que não tem uma relação umbilical com o Brasil (na América Latina prefiro de longe o México e o Perú), que não idolatro a cultura brasileira e não passa lá a vida nas férias. O Brasil interessa-me tanto quanto tem efeito no mundo globalizado e interdependente – e, consequentemente, na minha vida e na vida dos meus. Pelo que não me custaria relegar Bolsonaro para mais uma das muitas edições fora da banda desenhada de um pretendente a General Alcazar que a América Latina já teve.

O presidente Fujimori, do Perú, nas eleições que ganhou a Maria Vargas Llosa recorria com frequência a um expediente quando fazia campanha nas zonas quéchuas: colocava um dos bonés de pano coloridos que os índios usam e dizia que era índio como eles. E os índios aceitavam que sim, que aquele descendente de japoneses era um deles. Os americanos fustigados pela globalização também acreditaram que o milionário (no fio da navalha para vigarista) Trump também se identificava com eles. Está demonstrado que os eleitores acreditam nos maiores absurdos, se para isso estiverem inclinados, pelo que os brasileiros não são caso de estudo.

Sucede que as eleições do Brasil extravasaram o Brasil e trouxeram revelações na política portuguesa, sobretudo à direita. Que, como já referiu Alexandre Homem Cristo, não nos deixam apaziguados. Porque, por muito que a situação brasileira seja calamitosa – e é, com problemas económicos, violência e insegurança, corrupção de cima a baixo –, o presidente eleito Bolsonaro é demasiado intragável para que se tenham visto tantos apoios e contemporizações entre nós. Não, não era preciso declarar preferência pelo insalubre PT (eu preferia, ainda assim), mas não se demarcar claramente de uma aberração política é uma mancha no CV (houve à direita quem se demarcasse, claro).

No entanto não me surpreendeu muito. Vi o filme desenrolar-se até aqui desde a vitória de Trump há dois anos. Recordo-me dos que então estremeciam de horror quando se mencionava a possibilidade de Trump ser presidente dos Estados Unidos, mas que agora se divertem com o facto e se lhe converteram, oficial ou oficiosamente, e se esquecem de criticar o detentor do poder para permanentemente deitarem fel em cima dos seus opositores. A razão é simples: perceberam que havia sucesso na exploração da grunhisse, do ressabiamento, das divisões viscerais da comunidade, das guerras culturais, do ódio que os eleitores de direita andaram (aparentemente) anos a armazenar. Há mercado para isso, alguns aproveitaram. Também nada de novo, aqui.

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Mas o mal, com Bolsonaro, chegou escancarado à classe política à direita. Para Paulo Portas, não há nada de extravagantemente mau em Bolsonaro. O mesmo Paulo Portas que há tempos entendeu criticar o #metoo que afastou Kevin Spacey das salas de cinema e – resistam ao sono – o politicamente correto. É tão estafado e pouco sofisticado o ataque ao politicamente correto que espanta seriamente que Paulo Portas tenha embarcado nele. Sobretudo porque, se é um facto que o policiamento da linguagem da parte de alguns setores não se tolera, também é verdade que atualmente a má criação mais básica e a boçalidade é aplaudida por ser politicamente incorreta. Julgava eu que a direita de Paulo Portas, e a minha, era uma direita que apreciava pessoas com maneiras e que soubessem estar.

No PSD também me divertiu (é como quem diz) ver um deputado cujo nome foi há pouco tempo falado por razões que não se recomendam, bem como vários que lhe são próximos, muito ativo no facebook em defesa de políticas securitárias e populistas e com grande compreensão e apreço pelo fenómeno Bolsonaro. Não sei se é convicção genuína se é forma de galgar a onda para ganhar peso partidário entretanto perdido. Sei que foi indigesto.

É com tremendo desprazer, se não mesmo um travo de derrota, que vejo parte da direita assumir os comportamentos da esquerda radical que sempre me repugnaram: o exacerbar do ódio, a relação elástica com a verdade, a boçalidade, o desprezo pelas instituições democráticas, o ataque à comunicação social quando reporta factos hostis, o maquiavelismo e o maniqueísmo, tomar o escrutínio sobre o poder político como uma conspiração de forças malévolas. Acresce a adoção de um conservadorismo paroquial, a perda de compostura perante feministas e assuntos feministas (o maior diabo para estas pessoas), a efetiva defesa do direito dos homens a serem agressores sexuais (exceto se forem muçulmanos, que aí os crimes sexuais irrelevantes em ocidentais tornam-se de uma gravidade apocalíptica), o anti elitismo descabelado, o desejo de um mundo fechado e controlado.

Pela minha parte vou continuar a defender liberdade económica, mas também liberdade nos comportamentos individuais, liberdade de expressão e de imprensa, um país aberto e permeável às influências exógenas (essencial num pequeno país como Portugal), a perceção de que a mudança é inevitável e no longo prazo positiva (basta conhecer a História). Não confundo liberdade com ausência de legislação, embora em alguns casos possam coincidir. A garantia de acesso a cuidados de saúde e educação, independentemente dos rendimentos (embora a forma de os fornecer deva ser debatida). Moderação e consensos. Democracia.

Acima de tudo não aceito que me restrinjam a liberdade por ser mulher, seja através da criação de grande insegurança seja pela imposição de regras sociais que os ultramontanos querem trazer de volta ou pela recusa de ação perante um status quo desequilibrado. Critiquei sempre a esquerda por esquecer o atropelo dos direitos humanos das mulheres muçulmanas na Europa. Irei criticar esta nova direita pelo mesmo – com a agravante de os direitos que à direita querem constranger serem os meus, os da minha irmã, sobrinha e netas eventuais (que filhos só tenho rapazes), não os de uma comunidade exótica com que não se contacta.

Esta nova direita pode ter sucesso eleitoral. Afinal estamos em tempos em que se adora odiar. Mas convém lembrar a frase que Santo Inácio de Loyola disse a São Francisco Xavier para o seduzir para se tornar jesuíta: o que te vale ganhares o mundo se perderes a alma?