Conheci o João Bigotte Chorão em 1961, um ano determinante na História portuguesa e na minha vida intelectual e política, um ano de descoberta e confirmação de convicções.
O João era mais velho que eu. Sobretudo nesse tempo. Vi agora, na sua cronologia biográfica, que nasceu em 1933, ano da fundação do Estado Novo. Eu sou de 1946, que é toda uma outra geração.
Mas fomos correligionários ou camaradas no Jovem Portugal, ele dirigente, eu militante neófito e fundador no Porto dessa organização “nacionalista-revolucionária”.
O João era e foi sempre mais conservador que revolucionário mas tivemos outras afinidades: como a de nos termos mantido leais entre pensamento, palavras e obras em meio século de muitas mudanças, voltas e reviravoltas de pessoas e ideias. Conheci o João católico em religião, nacionalista em política e conservador em costumes; e em tudo isto com um sentido de medida, de equilíbrio, de razão prática, que lhe vinham de aliar uma cultura humanista e universal às raízes do Portugal profundo, da sua Guarda natal.
E houve também, entre nós, as afinidades literárias, que contam muito: como o amor à Itália, onde ele tinha raízes familiares, e a essa fabulosa tradição que vinha de Dante, gibelino pré-romântico, de Bocaccio, libertino, e de Petrarca, e depois desaguava em Giovanni Papini (outro grande destinatário da nossa comum devoção) e nos movimentos modernistas e nas revistas a que estava ligado, como fundador e animador; revistas como Il Leonardo, La Voce, Lacerba, La Vera Italia.
Papini, hoje esquecido, é um dos mais importantes e originais pensadores da primeira metade do século XX, um autor que devorei na adolescência. Tinha uma alma de crente atormentado pela dúvida, como caminho para a verdade. Por isso criou Gog e O Livro Negro, escreveu as Cartas aos Homens do Papa Celestino XVI; e, sobretudo, esse perturbante ensaio O Diabo, nos limites da heresia, ao procurar uma lógica de imaginação redentora para o amor de Deus. Um amor infinito que não poderia deixar de fora, no fim da História, criatura alguma; nem mesmo o Arqui-Inimigo de Deus e do Homem. O João estudou Papini com amor, diligência e método; eu era, e sou, um simples amador.
Foi também de estudioso profundo e grande autoridade (ele) para alferes de infantaria (eu) que partilhámos a paixão por Camilo. Camilo, a quem o João consagrou várias obras, desde logo o Camilo: a Obra e o Homem e mais uma série de ensaios que conseguem ser peregrinos em caminhos já andados. Fomos ainda amigos, leitores e admiradores de escritores quase malditos, como Tomaz de Figueiredo e Vintila Horia, a quem o João consagrou estudos, e de escritores declaradamente malditos, como Drieu, Brasillach, Céline, a suite française.
Além de uma bibliografia fundamental na ensaística e na crítica literária portuguesa, o João Bigotte Chorão está ligado à cultura nacional pela sua longuíssima carreira na Editorial Verbo, do seu grande amigo Fernando Guedes. Ali, orientou, não só a Grande Enciclopédia Verbo, mas também obras fundamentais na área do pensamento filosófico e político, como as enciclopédias Logos e Polis. Também nos cruzámos aí com frequência. E foi aí, na Verbo, a minha primeira publicação em livro: um estudo sobre as “Polémicas de António Sérgio”, inserido nas Grandes Polémicas Portuguesas (1967), dirigidas por um outro bom amigo comum, o Artur Anselmo, e onde o João historiava e analisava o Ultimatum de Álvaro de Campos e os manifestos de Almada e de Ferro.
Quando lancei a revista Futuro Presente, o João também colaborou nela. Quisemo-la como instrumento de “combate cultural”, um combate de que nunca nenhum de nós desistiu – leitores atentos de um outro italiano, Gramsci, que também éramos.
Lembro o João como um homem bom, de grande serenidade e sentido de humor, coisa rara nos nossos círculos ideológicos, cujos frequentadores, juntando a forma ao conteúdo, primavam mais pela exaltação. Ele mantinha a tranquilidade de alguém que está bem com Deus e com o mundo porque está bem consigo mesmo; alguém com convicções fortes e fundas que não precisava de dar gritos para ser ouvido.
Tinha a Graça de Deus… e tinha a sua graça:
Um dia, perto do Príncipe Real, em 1970, cruzei-me com ele. A meio da conversa, o João Bigotte disse-me, en passant, que se ia casar. Surpreendido e em tom de quase censura não pude deixar de lhe dizer do meu espanto:
– O quê, João? Então você vai-se casar e não diz nada aos amigos?!
E ele, seráfico:
– Jaime, não sou nenhum eclesiástico, nenhum padre Felicidade, para andar por aí a apregoar a minha boda!
(Eram tempos conturbados para o catolicismo doméstico e o padre José da Felicidade Alves, “padre progressista” e pároco de Belém, tinha acabado de anunciar à comunidade, solenemente e do púlpito, que se ia casar).
Descanse em paz, João. Saudades ao Dante, ao Camilo e ao Papini.