Em altura de subida dos juros implícitos da dívida soberana da República Portuguesa – convém sempre recordar que toda a dívida pública portuguesa é assumida em moeda “estrangeira” – assistimos a mais um momento de pânico entre a comunidade que “monitoriza” o indicador. E, com ele, a um festival de absurdo cujos contornos fazem lembrar a Convenção de Bruxos de Vilar de Perdizes, mas para pior.

Um Estado, financeiramente falido, emite obrigações que ninguém compra, tirando o Banco Central Europeu e os membros do mercado regulado pelo Banco Central Europeu. O absurdo de andar a olhar para juros implícitos de obrigações que ninguém compra, compara-se com a valorização que as pessoas fazem da sua própria casa. Acham que vale um valor que nunca ninguém deu por ela e, apesar de ninguém dar nada por ela, determinam que vale várias centenas de milhares. Na verdade, aquilo que se está a medir quando se mede um juro implícito numa obrigação tem por base que essa obrigação anda a mudar de mãos de forma líquida (às carradas!) e não porque a filha da D. Ermelinda precisou do dinheiro para um computador ou porque um banco qualquer decidiu vender três.

Mas o juro implícito não está compatível com o rating das obrigações? Pois, este também não existe, é a fingir. Na verdade, todas as empresas de rating dizem que as obrigações do Estado falido são… obrigações de um Estado falido. Tirando uma. Essa agência, quando avalia as obrigações do Estado falido, determina se as poucas entidades que ainda compram as obrigações, as podem comprar. Isto porque há uma lei que diz isso. Ou seja, a agência tem que avaliar o risco de algo cujo principal fator de risco é a sua própria avaliação. E essa avaliação de risco determina se os únicos interessados na avaliação deles continuam interessados. Fator que, em muito, determina a avaliação do risco que fazem. Confuso? Vejamos, a DBRS avalia o risco de uma coisa que só tem risco se a DBRS quiser que tenha risco. Quem determina que a DBRS é o principal fator de risco é quem compra e que quer ouvir da DBRS que não tem risco, apesar da lógica e do resto do mundo dizer que tem, e não é pouco. Portanto, quem determina o que a DBRS diz é quem compra, e compra de acordo com o que a DBRS diz. Espero que assim esteja claro! Ou talvez não…

A verdade é que o BCE compra ou aceita como colateral de quem compra essas obrigações. Mesmo que quem compre sejam bancos desse Estado falido. O que não deixa de ser curioso que a solução que o regulador tem para os bancos em naturais dificuldades pela exposição a esse Estado seja meterem mais dinheiro no Estado. Aqui há um problema. Se o BCE pedisse uma taxa de juro muito grande aos bancos que compram obrigações do Estado falido, então os bancos só poderiam comprar obrigações que tivessem uma taxa ainda maior. Assim o BCE empresta dinheiro de borla. Mas se o BCE empresta dinheiro de borla, então os bancos não precisam de pedir dinheiro emprestado a mais ninguém, incluindo aos outros bancos do mercado. A Euribor, a taxa média do mercado interbancário, está hoje em níveis espantosamente baixos e, curiosamente, sem que exista mercado interbancário porque o BCE fará sempre mais barato que qualquer outro banco. Em consequência, todos os empréstimos à habitação do país falido estão indexados a um indicador que representa uma coisa que não existe. A razão pela qual os empréstimos são indexados, e não a taxa fixa, é para proteger os bancos das oscilações dos mercados. Afinal estão todos indexados a uma taxa fixa.

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Podia dizer-se que isso seria um problema para os depositantes. Primeiro, porque o dinheiro dos depósitos deles não serve para nada. Os bancos não precisam de depósitos para sobreviver porque o dinheiro do banco central é de borla, não é preciso andar a pagar empregados. Segundo, porque os créditos andam indexados a uma coisa imaginária e isso desprotege os depósitos. Mais uma vez, isso não é verdade. E não é verdade porque as pessoas não são depositantes, são potenciais lesados. Isso representa uma forma de cobertura de risco que garante investimentos mais rentáveis, na ausência de uma taxa nas poupanças que seja atrativa. O banco pode, sem dispensa da consulta do prospeto, oferecer duas soluções às pessoas. Uma protegida pelo sistema de proteção de depósitos, garantido pelo regulador europeu, e outra pelo sistema de proteção de lesados, garantido por não-contribuintes, que protege soluções de taxas mais elevadas. Esta evolução no sistema financeiro do Estado falido veio muito tarde e não chegou a tempo de ser usada com a D. Branca ou o BPN, mas esteve, felizmente, pronta para compensar as pessoas que interessam na sociedade portuguesa.

Neste cenário, o que significam então os juros implícitos da dívida soberana portuguesa? Parece que a DBRS disse que ficaria incomodada se os juros passassem acima dos 4%. O que não deixa de ser admirável, porque a dívida subiu este ano cerca de 5,5% do PIB, mas o incómodo só surge se o financiamento do Estado passar a ter um preço de 4% ao ano. 3% será bom, 2,5% maravilha, agora 4% é verdadeiramente incomodativo. Se subir 5,5% em volume, isso será irrelevante. Mau é se subir 1% nos juros. Mas, no fundo, compreende-se o incómodo. Não que vão mudar a avaliação deles que, como sabemos, depende do BCE e este depende da avaliação deles. Mas é incomodativo.

Nem se justifica que a DBRS pudesse ter outra atitude. Até porque o valor da dívida só pode ter subido 2,4% e não os 5,5% que aparecem nas contas do Estado. Não nos passa pela cabeça que um Estado que só lhe faltou dinheiro para 2,4% do PIB, de acordo com o défice apurado até agora, tivesse ido pedir 5,5% do PIB para pagar outras coisas. Portanto, corretamente, a DBRS deve ter detetado este empolamento do crescimento da dívida que, por uma qualquer incorreção contabilística, parece ser muito acima daquilo que deveria ser, de acordo com os números do défice. Se houvesse quem comprasse dívida da República Portuguesa, poderia estar hoje confiante na avaliação de risco da DBRS, se a fosse de facto, e poderia até olhar para uns juros implícitos baixos, se estes existissem, e ver se valeria a pena colocar o dinheiro à Euribor, se esta significasse alguma coisa, ou investir em instrumentos de rendimento garantido por não-contribuintes que não existem ou por um banco central que não sabe o que faz.

Uma coisa é certa, a sociedade portuguesa, e mesmo a europeia, parece cada vez mais protegida dos especuladores da economia de casino ao serviço do imperialismo capitalista. Os mercados financeiros onde hoje a economia portuguesa se funda são de uma solidez absolutamente invejável, até porque nem sequer existem, são inventados. Os juros implícitos da dívida portuguesa até podem subir para o dobro ou descer para metade que isso tem uma influência nula nas finanças do Estado português. O sururu que surgiu por o Presidente da República ter reduzido a importância dos juros implícitos usando o argumento da inflação não se justifica de todo. Sim, se vivêssemos num mercado normal, a afirmação do Sr. Presidente seria absurda. Mas, nos mercados em que nos movimentamos, o Sr. Presidente tem toda a razão. A afirmação do Sr. Presidente seria, no entanto, corretíssima do ponto de vista económico, se a República Portuguesa fosse um Estado independente e tivesse a possibilidade de ter a sua própria moeda. Mas até a existência do Estado independente é a fingir. A verdade é que, neste mundo de brincar financeiro em que andamos, tudo é aceitável porque, na verdade, nada existe de facto.

A não ser que dê asneira. Nessa altura saberemos que a culpa foi dos bancos.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer