Dois mil mortos, 800 mil deslocados que se prevê poderem chegar muito em breve a um milhão. Números impressivos, mas que estão ainda longe de poderem traduzir toda a verdadeira dimensão da tragédia humanitária que se vive por estes dias no Norte de Moçambique.

Quando em setembro passado, no Parlamento Europeu, começámos a chamar a atenção da Comissão Europeia e da comunidade internacional para os ataques de grupos armados em Cabo Delgado, verificámos um pungente alheamento face ao que se estava a passar. Na verdade, quando o assunto chegou a debate, estávamos já bem longe do ponto de partida, em 2017.

Ao longo de todo esse tempo – três anos, pelo menos – as autoridades moçambicanas menosprezaram os ataques, pensando ser capazes de os conter, e a União Europeia, habitualmente alheada em relação a esta parte de África, assim se manteve. Não fora a ação do Parlamento Europeu e o despertar da atenção mediática internacional provocada pelo ataque a Palma, ainda hoje continuaríamos de “olhos fechados”.

No dia 11 de junho parti de Bruxelas rumo a Maputo. Daí segui para Pemba – Cabo Delgado, onde todos os dias continuam a chegar deslocados internos. Os relatos de decapitações, esquartejamentos, raptos de crianças e mulheres, violência sexual surgem nos diálogos que mantive, cortados por pungentes silêncios de quem viveu e assistiu a tudo.

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Graves violações dos direitos humanos continuam na mais absoluta impunidade, num país que verdadeiramente ainda não curou as marcas das guerras que o dilaceraram ao longo dos anos. A guerra pela independência e depois a guerra civil (o acordo final entre FRELIMO e RENAMO só foi atingido em 2019), existindo ainda um grupo que continua a perpetrar ataques no centro do país.

À pergunta sobre a razão do surgimento dos movimentos armados com alegadas ligações ao movimento jihadista Al- Shabaab, no Norte do país, encontramos respostas diversas. O Estado moçambicano permanece fraco e com dificuldade em estabelecer uma presença clara na totalidade do seu vasto território.

A descoberta e exploração do gás natural, das maiores reservas de África, criou expetativas de desenvolvimento que se mostraram goradas, sobretudo para os jovens que, devido à falta de qualificações, se viram afastados dos postos de trabalho criados, em detrimento de gente de outras províncias.

A tudo isto pode ser acrescida a riqueza em minério e pedras preciosas, nomeadamente rubis, na região, para além de conhecidas rotas de diverso tipo de tráfico por via marítima.

A porosidade fronteiriça terrestre e a cupidez de alguns interesses externos também têm o seu papel em tudo isto, não sejamos ingénuos.

A persistente dificuldade do governo moçambicano, primeiro no reconhecimento do problema e depois no pedido de ajuda externa, potenciou que tudo tomasse proporções inaceitáveis.

A União Europeia já determinou, e bem, que o seu apoio a Moçambique se desenvolverá em dois patamares: por um lado, no imprescindível restabelecimento de condições de segurança; por outro, na mais que urgente ajuda humanitária.

Neste momento, no terreno falta tudo para acudir às populações em fuga. Alimentos, abrigo, roupas, cuidados de saúde, respostas escolares urgentes para as mais de 350 mil crianças deslocadas.

Mas importa ver para lá da emergência e olhar para a necessidade de reformas: do reforço institucional do Estado à capacitação dos serviços públicos e ao combate à impunidade e à corrupção.

O atual ciclo só se pode quebrar com uma aposta clara na educação e formação profissional dos mais jovens. Sejamos objetivos: o seu afastamento das oportunidades de trabalho é uma via aberta para o recrutamento radical.

A Agência para o Desenvolvimento Integrado do Norte é uma aposta certa. Mas são necessários resultados. As multinacionais que se instalam na região têm que contribuir ativamente para isso e regressei de Moçambique com o sentimento de que é preciso fazer algo por isso.

Uma coisa é certa: o espaço de manobra é estreito e não admite grandes falhas.

Cabo Delgado não pode esperar!