O acalorado debate sobre o episódio do canil de Santo Tirso causa-me muita estranheza e apreensão.

Estranheza por não se centrar nalgumas questões chave: caso do que foi feito em quatro anos na adaptação à legislação que proibiu os abates, das verbas para tal (um milhão por ano para custos estimados em 100 milhões), da pacífica convivência com ilegalidades, ou mesmo da limpeza de terrenos, nomeadamente PMDFCI, fiscalização, atuação municipal na substituição coerciva aos proprietários, etc.

Apreensão pela apressada, e consequentemente cega, resposta: ignorando o secular trabalho da DGAV, muda-se a tutela de um Ministério da Agricultura cada vez mais vazio (pescas, florestas, animais, ainda acaba a legislatura sem tutelar nada) para o Ministério do Ambiente, quiçá inspirados no nome de um conhecido partido político, que bem precisava do gás recém perdido, juntando no mesmo saco conservação da natureza com bobys e tarecos.

Animalismo e conservação da natureza? Não bate a bota com a perdigota.

“O inimigo do meu inimigo, meu amigo é”. Por conveniência, a luta anti-capitalista, o monstro do dinheiro, animalismo e ambientalismo estreitam laços na nossa sociedade. Não por nos aproximarmos da natureza, antes pelo contrário, porque cada vez mais vivemos numa bolha citadina, apenas com animais como companheiros, animais esses humanizados ao ponto de serem chamados de filhos, cada vez mais longe da natureza que muitos conhecem apenas pelos desenhos animados. As incongruências chegam ao ponto de negar aos humanos direitos que se reivindicam para animais de companhia, caso, por exemplo, dos vegetarianos pela causa animal que compram “chicha” para o Lulu…

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Não quero parecer ríspido, mas um cão, um tigre, uma floresta, não têm direitos. Os direitos são uma construção unicamente humana. Assim, os únicos direitos que podem gozar, são os que a nossa espécie lhes quer dar.

Mas como queremos dar direitos aos nossos “melhores amigos”, também valorizamos a natureza, o direito à existência dos milhões de espécies que connosco viagem nesta jangada cósmica que é o planeta Terra. A conservação da natureza é a área que desse direito se ocupa. E, ao contrário do animalismo que valoriza os indivíduos e suas vidas, aqui não há contemplações em dizimar vidas contrárias à biodiversidade — vejam-se as espécies invasoras e quanto se reclama a sua erradicação. Cães e gatos entram nessa lista.

Com efeito, cães ferais pelo mundo, além de responsáveis por mais de uma dezena de extinções, ameaçam a existência de cerca de duas centenas de espécies. No nosso país, podem hibridar com lobos — espécie ameaçada e legalmente protegida — além de propagarem doenças, atacar gado ou mesmo pessoas;

Gatos ferais, pelo mundo, matam mais aves num só dia que o plástico dos oceanos num ano. A sua erradicação nalgumas ilhas beneficiou centenas de espécies. Por cá, matam igualmente inúmeras espécies protegidas (por exemplo morcegos), competem com outros pequenos predadores, e também hibridam com o raro e ameaçado gato-montês.

Cães e gatos não existiam sem o homem, são estranhos à natureza, são organismos que geneticamente modificámos para nosso proveito. Em muitos países, a conservação da natureza ocupa-se de os eliminar. Cá juntamos tudo sob a mesma alçada, quando já nem para os seus desígnios se safava…

Mas este exotismo já não espanta ninguém. Já estamos habituados a casas começadas pelo telhado, a cabeças a rolar por conta do taticismo, à duplicação de organismos públicos, à desvalorização do trabalho feito, à normalidade dos incumprimentos às resmas de leis sem ponderação, ao ignorar dos sintomas da cegueira legislativa. Natureza? Animais? Ou mesmo Pessoas? Apenas boas desculpas. Isto é Portugal, nada mais interessa que não a caça ao voto.

PS: A apreensão será ainda maior se, veremos como evoluem os contornos, além de cães e gatos — e cágados, peixes, periquitos, isto é, animais de companhia — se estender a outros animais domésticos, o sector pecuário.