Nem a Dra. Graça Freitas, nem o Dr. Lacerda Sales, nem o Dr. Marques Mendes, nem sequer o subtilíssimo Marcelo (que depois entrou em pânico e na perversidade política consequente) conseguiram descobrir qualquer “evidência científica” que anunciasse o que se passou nestes últimos dias. Os comentadores quase todos, muito desembaraçados, declararam que o real actual era impossível.
Quando o Circo Costa chegou à cidade, o coro maravilhado não se calou. Vinha aí o maior espectáculo do mundo, o sol radiante que substituiria a noite negra, o deslumbramento da cultura face ao inominável horror da incultura, a atenção ao humano contrariando a paixão do não-humano. Como convém a todo o verdadeiro espectáculo, convinha que ele assentasse num mito fundador. O mito fundador do Circo Costa, anunciado em grandes cartazes por todo o país, era simples e enunciável de forma simples, mais simples – muito mais simples – que o mais simples mito primitivo: o “virar a página da austeridade”.
A pouco e pouco vieram chegando notícias do Circo Costa, notícias que nos diziam que os “trabalhadores do espectáculo”, como se diz, não eram os melhores. Começou a ter-se a prova clara de que o rosto feliz dos artistas dissimulava, cada vez mais dificilmente, uma ficção incongruente. Uma ficção incongruente: um enredo no qual os personagens não apenas oscilavam nas suas características psicológicas mas tinham duas naturezas, que ora se combinavam numa forma, ora se combinavam noutra. Num romance, até pode ter graça – embora, segundo a minha experiência, seja raro. Na realidade, é uma desgraça. Lidamos mal com a labilidade e a duplicidade. A má-fé e a reserva mental estragam-nos a vida. Isto, que vale para a vida pessoal, vale também para a vida política.
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