1. E de súbito, por entre as fieis neblinas matinais que sempre acolhem as manhãs aqui no oeste, abro a janela para o jardim e eis diante dos meus olhos surpresos o primeiro presente de Natal: camélias, muitas, rosa e vermelho, uma profusão delas, despontando no verde das cameleiras. Camélias, Santo Deus, flor entre as flores (de igual talvez só a rosa), deve ter sido o frio, há duas semanas não havia uma que se visse e agora… são um mar embalado pelas neblinas.

2. A verdade é que o Natal já começara há uns dias. Foi em Viena e estava muito frio quando numa manhã de Dezembro, passei a porta da Igreja dos Jesuítas, faltava ainda um bom bocado para a missa mas eu sabia que, lá dentro, já estariam a ensaiar a Missa de Lord Nelson (Haydn). Desde que um dos meus filhos lá vive fui-me apropriando da cidade, criando hábitos, afeiçoando-me a rotinas. A maior é sem dúvida o encontro semanal nesta igreja, situada muito perto do centro, severa por fora, excessiva e excessivamente barroca, por dentro. É de há muito costume do seu pároco fazer acompanhar a missa do domingo por uma orquestra e coro que, a cada vez, toca e canta uma missa de um compositor diferente. Sim, é Viena, mas mesmo assim. Não é fácil descrever o ambiente, o privilégio daquela oferta, a espiritualidade conferida à celebração pelo impacto de uma missa cantada envolvendo a missa celebrada, ambas desenrolando-se recolhidamente, em magnifica acústica, numa quase prodigiosa simbiose. Descobri por puro acaso esta espécie de dádiva – e que outro nome lhe dar? — quando andando a pé pelo centro histórico, ouvi música. Entrei. Era o som absolutamente arrebatador da Missa da Coroação de Mozart, cantada nos Jesuítas e foi assim que descobri esta igreja e este seu costume. Nunca deixei de voltar. Este ano, uma manhã gelada do feriado santo do dia 8 de Dezembro, cantava-se Haydn, cheguei muito cedo, ainda eles ensaiavam numa quase penumbra. Sentada solitariamente num banco frio, era como se aquela orquestra e aquele coro tocassem só para mim o anúncio do Natal. No dia seguinte, domingo, tocou-se a Missa Alemã de Schubert. O Natal tinha começado. E eu nunca desistirei dele.

3. O Natal fora de portas tem a distingui-lo uma espécie de intima espessura que pouco se encontra, e talvez já nem sequer exista nos centros urbanos ou nas grandes metrópoles, onde a sua simbologia cristã é cada vez mais marginal, senão objecto de caricatura ou desprezo. Acredito porém que as “diferenças” entre distintas vivências e versões natalícios diga ainda alguma coisa a alguém para quem o Natal não se esgote exclusivamente na mesa ou no centro de comercial.

Onde estou agora há desde logo o silêncio, tão diferente quando se está nas lonjuras do campo, dos arredores, deste ou daquele Portugal mais ou menos “profundo”. Nesses lugares menos poluídos pela azáfama, onde se dão as Boas Festas em nome próprio, andando a pé pelas ruas, numa troca de votos festiva porque há tanto de vagar quanto de sinceridade para isso; onde se vai ao jardim ou à terra buscar azevinho, musgo e bagas vermelhas com que enfeitar casas, presépios e árvores de Natal; onde o tempo tem tempo e não é mais essa lâmina fina a cortar-nos a vida; onde as coisas adquirem importância porque querem de facto significar alguma coisa, dos livros que se lêem à música que se ouve, aos gestos que se têm. Sobretudo ao como se pensa sobre o que inquieta, interpela e dói, e nestes dias dói mais. Quanto pesa a mochila do lutos e da perda, a quantas vai a nossa própria contabilidade das coisas da vida? Dizer “amanhã” que sentido tem? Não que a distância silenciosa do tropel citadino recupere o irrecuperável ou sequer amacie a inquietação. Mas por breves, concretos instantes, troca-se a ameaçadora incerteza dos dias pela convicção praticada de duas ou três certezas. Haverá mais certo, quero eu dizer, que a promessa do Natal e do seu anúncio? Que a luz e o espírito desta quadra tão portadores de promessas ? Que a família, reunida e animada pelos muitos que vêm de longe, sabendo que é do seu cais que partimos e a ele que sempre voltamos? Haverá enfim mais certo do que a vontade de querer guardar a sete chaves tudo isto? Puerilidade? Nenhuma. Nostalgia? Imensa. Verdade? Toda. Simplismo? Ainda bem. Não costumam as certezas ser simplicíssimas quando são fortes como âncoras?

4. Falei acima de música, coros e orquestras e lembrei-me do Concerto de Natal de Mafra, um lugar onde vou e volto, sempre com o gosto intacto. Desta vez eram as vozes do Coro Lisboa Cantat dirigido por Jorge Alves, atapetando musicalmente os nossos primeiros passos em direcção ao Natal. E que bem deram a ouvir Haendel, Briten, Vasco Pearce de Azevedo, João Vaz e ouviu-se também o orgão do Evangelho, onde se sentou o próprio João Vaz e o orgão da Epístola, tocado por Sérgio Silva. Já aqui falei várias vezes de Mafra e da excelente direcção que lhe imprime Mário Pereira, director do Palácio. Este conjunto raríssimo, joia da coroa do património português (os seus seis órgãos são os únicos no mundo construídos para tocarem em conjunto) vale todos os desvios mas por vezes tenho a sensação que os lisboetas valsam entre a preguiça e talvez a ignorância. Não sabem o que perdem. Mas quando descobrirem a moldura da Basílica e o som dos seus órgãos tocando a quatro, a dois ou a seis (um must absolutíssimo) talvez se lembrem desta pobre escriba que lhes deseja um Santo Natal.

5. Boas Festas! E um Dezanove que não nos envergonhe muito.

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