Um diagnóstico de cancro tem sempre o impacto de um murro brutal, de um soco que nos agride de tal forma que nos leva ao tapete e nos deixa K.O. Ou, para usar as metáforas mais comuns, é como se o chão desaparecesse debaixo dos pés e o mundo inteiro desabasse sobre nós. Diria ainda que algumas vezes o anúncio da doença é feito como quem atira um pedregulho com tanta força que esmaga mesmo.

‘Cancro’ continua a ser uma palavra muito difícil para todos, mas acima de tudo para as crianças e os jovens, pois nestas idades a doença parece não fazer sentido absolutamente nenhum.

É duro colocar a questão desta maneira, mas talvez seja imperativo fazê-lo: ninguém está preparado para sofrer e, muito menos para aceitar morrer, quando sente que ainda mal começou a viver.

As estatísticas são terríveis e revelam incontáveis casos de cancro em idades muito precoces. Bebés, crianças de colo, rapazes e raparigas muito novos, adolescentes, jovens e adultos são diagnosticados em todos os continentes. Portugal não é exceção e, seja aqui ou do outro lado do mundo, ninguém está preparado para a violência da certeza de ter esta doença. Mas há boas notícias e a travessia, por mais dura que seja para quem enfrenta um cancro, pode ser feita com esperança na cura. Há cada vez mais casos de cancro, é certo, mas também há cada vez mais sobreviventes. De todas as idades.

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No sábado passado mais de mil pessoas juntaram-se para caminhar e celebrar os 25 anos da Acreditar. Esta caminhada comove pela quantidade de pessoas que, mesmo em geografias tão distantes como Porto, Funchal, Coimbra e Lisboa, se juntaram à mesma hora pela mesma causa, mas acima de tudo interpela-nos porque nesta multidão havia muitos pais e filhos, amigos e familiares de crianças e jovens com cancro. Pessoas que estão a viver um tempo de cabeceira altamente erosivo.

Mais importantes do que os que apoiam são os que precisam de apoio por estarem, eles próprios, a atravessar a doença. E também estes caminharam. Nem todos, mas alguns. Fizeram-no com bravura e heroicidade, com alegria e confiança, para que muitos outros possam manter viva a esperança. Impressiona muito ver crianças e jovens doentes a caminhar lado a lado com os seus pais, os seus amigos e as suas famílias.

Se insisto nos pais e amigos é porque conheço bem a realidade da Acreditar, Associação de Pais a Amigos de Crianças com Cancro, pois também eu fiz dez anos de voluntariado nesta organização, logo ao início. Juntei-me depois de conhecer a fundadora e a sua história, mas também os pais que estiveram com ela, ao seu lado, para lhe dar forças e também para receber as forças que ela lhes dava. Falo de pais que também tinham os seus filhos doentes. De mulheres e homens de todas as idades que viveram dia a dia, hora a hora, a terrível realidade diária do sofrimento dos seus filhos pequenos. Também eu tinha estado à cabeceira da minha afilhada Joana, que aos 10 anos teve um osteossarcoma, e sabia bem o que nós, familiares e amigos, sentíamos.

Conheci a Ana Corrêa Nunes, fundadora da Acreditar, quando a sua filha pequena já estava curada e fiz-me a mesma pergunta que tantos outros fazem: como é que uma mãe que passou por tudo isto consegue voltar ao hospital para ajudar outras mães, outros pais e outros filhos? A interrogação era de tal forma recorrente e urgente que a própria Ana esclareceu uma e outra vez, sempre que ouvia a pergunta ou lia essa interrogação no olhar de alguém:

– Não somos masoquistas. Voltamos porque sabemos que o sofrimento por que passámos pode ajudar outros que estão a viver uma realidade semelhante. Somos capazes de calçar os sapatos dos pais que sofrem o mesmo que nós sofremos e também conseguimos ajudar outros filhos a partir daquilo que viveram os nossos próprios filhos.

Fez-me sentido na altura porque também eu senti que podia ser mais ajudada e ajudar mais por ter estado um ano à cabeceira da Joana, a minha afilhada de 10 anos que eu tanto amava, e que sofria desmesuradamente. Nunca a ouvi queixar-se e, surpresa das surpresas, muitas vezes era ela quem nos tentava consolar. Na altura não sabia, mas hoje sei que não era uma exceção, pois a esmagadora maioria de crianças e jovens tentam proteger os pais do seu próprio sofrimento e inventam mil e uma estratégias para os fazerem acreditar que não estão assim tão mal. A Joana era uma criança e felizmente sobreviveu. Ensinou-me muito e aprendi com ela, à sua cabeceira, o que não sabia possível aprender tão cedo na vida, nomeadamente a aprender a aceitar a própria morte.

Vinte e cinco anos passam a correr para quem não vive na pele a realidade do cancro, nem experimenta o sofrimento de ver os seus entes mais queridos sofrer. Mas em 25 anos acontece muita coisa. E nestes 25 anos de Acreditar, a fabulosa Associação de Pais a Amigos de Crianças com Cancro, mais de 10 mil famílias receberam apoio direto em 4 regiões, nas 3 casas e mais o centro de dia que a Associação construiu e gere nos quatro núcleos onde funciona. A saber, e apesar de acima já ter enunciado as 4 cidades: Lisboa, Porto, Coimbra e Funchal.

Desde que foi fundada, a Acreditar atribuiu 22 bolsas de estudo, promoveu mais de 50 campos de férias e incontáveis idas à Disneylândia, mas também juntou à sua volta um círculo alargado de mecenas e amigos, bem como um grupo de 650 voluntários. Impressionante, insisto.

Voltei a falar com a Ana Corrêa Nunes a propósito deste quarto de século e recordámos tempos que tanto nos parecem extraordinariamente remotos, como parecem ter sido vividos ontem.

– Eu tinha 28 anos e 3 filhas quando a Maria ficou doente. Tinha apenas 4 anos e era a mais velha. As outras duas tinham 2 e 1 ano. Depois ainda nasceu a Mariana, que acabou de casar.

Quatro filhas em cinco anos, uma delas com cancro. Ana, a mãe, tinha tudo para não voltar a querer reviver o pesadelo, mas optou por voltar ao hospital e ajudar outras mães, outros pais e outros filhos. Graças a ela e a todos os que estiveram com ela desde o início, nasceu a Acreditar. Não foi um impulso imediato, mas uma necessidade sentida depois de a Maria ficar curada.

A Maria que nesta mesma semana, no dia 18 de Outubro, fará 35 anos e já é mãe de uma filha, foi diagnosticada com um tumor de Wilms e deram-lhe apenas 10% de hipóteses de sobrevivência. Na altura não era nada óbvio que atravessasse a doença e pudesse ficar curada. Há 30 anos as possibilidades de cura do cancro eram muito reduzidas e o caminho que pais e filhos percorriam era extraordinariamente pedregoso. Ainda é. Felizmente a Maria curou-se, mas nem tudo correu bem com os pais e mães fundadores da Acreditar. João Bragança, atual presidente da Associação, perdeu a sua filha quando ela tinha apenas 8 anos.

– Somos todos pais de crianças e jovens com cancro, mas nem todos os nossos filhos sobreviveram e o que é verdadeiramente extraordinário é que convivemos diariamente uns com os outros sem que uns se sintam injustiçados.

É, de facto, extraordinário.

– Neste momento, 80 por cento dos pais têm filhos que se curaram e os outros 20 por cento perderam os seus filhos, mas nesta caminhada para celebrarmos os 25 anos da Acreditar caminhamos juntos, lado a lado. Damos muitas forças uns aos outros.

Os filmes da caminhada que passaram nas televisões e redes sociais são muito eloquentes do espírito de entreajuda, que resgata os pais em luto da única dor que o tempo não cura nem apaga. Perder um filho é realmente uma dor que nunca deixa de doer, mas estes pais provam que é possível permanecer de pé e ter forças para continuar a caminhar.

Nesta multidão de pessoas que se juntou para caminhar havia jovens e crianças carecas, amputadas e em cadeiras de rodas. As imagens são tocantes e reveladoras de uma verdadeira fortaleza interior.

– Os Barnabés são os jovens voluntários que já atravessaram o cancro e acolhem os que acabaram de receber o diagnóstico. Não há palavras para expressar os sentimentos que unem uns aos outros.

Em todo o mundo estes jovens, voluntários ou não, chamam-se ‘survivors’. Na Acreditar todos sentiam que a palavra sobrevivente era tremenda e decidiram publicar um primeiro livro, logo no início, para ajudar as crianças e jovens que lidavam com o diagnóstico, os tratamentos, a queda de cabelo, as cirurgias, o isolamento e tudo o que é próprio das fases de quase todos os cancros.

– Não quisemos usar a palavra sobreviventes e também não queríamos fazer distinção entre raparigas e rapazes, etnias e crenças. Decidimos criar uma história com um urso que passava por todas as etapas do cancro e saia curado e reforçado.

O urso da história chama-se Barnabé e, desde então, os voluntários que passaram pela doença e acolhem os novos doentes chamam-se Barnabés.

Na Acreditar, o apoio é diário e a ajuda faz-se olhos nos olhos, pai a pai, mãe a mãe, criança a criança. Testemunhei isso nos 10 anos em que também eu fui voluntária e senti que as forças era restauradas, resgatadas por ser tudo tão forte e autêntico.

A palavra ‘cancro’ ainda é uma palavra dura e difícil, mas na Acreditar todos acreditam que não é o fim da linha e provam isso mesmo, independentemente do que acontece a cada um.

Termino com a maravilhosa declaração que a Maria, agora mãe – na altura ainda filha e muito pequena, que acabava de sair de um cancro violento – fez nesta caminhada de sábado, quando alguém lhe perguntou como é que a sua mãe tinha sido capaz de criar a Acreditar. Respondeu à pergunta com a sua própria interrogação, que fica a fazer eco em nós:

– Não é nada claro porque é que a minha mãe voltou ao hospital.

Felizmente voltou.