Cânhamo é o nome dado às plantas do género Cannabis com baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC), convencionalmente menos do que 0,2%, de que se usam as fibras para fabricar cordas, suportes para escrita, isolantes térmicos, etc..

As plantas do género Cannabis, em especial a C. sativa e a C. indica, contêm mais de 100 substâncias que se designam genericamente por canabinóides. Estas substâncias têm efeitos fisiológicos reconhecidos, em especial no sistema nervoso central e periférico, alguns com acção psicotrópica, o que levou ao seu crescente uso recreativo e, consequentemente, à crescente dependência física e psicológica de uma parte significativa da população mundial, com destaque para adolescentes e adultos jovens.

Por outro lado, é sabido que alguns dos canabinóides, mimetizando a atividade dos endocanabinóides que todos temos no nosso organismo, podem supostamente ter efeitos terapêuticos. Tentando explorar a provável eficácia terapêutica de alguns canabinóides, a indústria farmacêutica desenvolveu medicamentos para uso humano, sintéticos ou “naturais”, que estão indicados, ou são usados sem indicação aprovada, no tratamento de, por exemplo, náuseas e vómitos, epilepsias, esclerose múltipla, caquexia, anorexia associada a doenças comsumptivas.

Em suma, há canabinóides no mercado, disponíveis após produção controlada em ambiente industrial certificado, com quantificação exacta do fármaco activo, com doses definidas, ou seja, como qualquer outro medicamento. Em boa verdade, são poucas as situações em que um canabinóide é superior a outras alternativas existentes. Na maioria das situações, nos estudos efectuados, demonstraram-se inferiores a outros medicamentos. Veja-se o caso do tratamento da dor, em que os opiáceos são muito mais eficazes, ou das náuseas e vómitos em oncologia, onde os procinéticos são melhores e os bloqueadores dos recetores tipo 3 da hidroxitriptamina são, quase sempre, a primeira escolha.

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Todavia, fruto de algum atavismo e, muito provavelmente, pela estigmatização da Cannabis, ainda há muita investigação com canabinóides que deve ser feita com urgência. Existem, seguramente, milhões de compostos naturais à espera de serem descobertos. É curioso verificar que a investigação de fármacos extraídos da Papaver somniferum, a papoila do ópio, foi mais intensa e frutuosa do que aquela que já foi feita com Cannabis.

Desde há muitos anos, graças à actividade fisiológica da sua composição química, usam-se plantas para tratar doenças. Foi a partir do estudo das propriedades, quase sempre reconhecidas pelo seu uso empírico, do ópio, da chichona, da casca do salgueiro ou da cocaína que se chegou à morfina, ao quinino, ao ácido acetilsalicílico e à procaína.

Da mesma forma, o uso da marijuana revelou-se como capaz de proporcionar alívio e bem-estar em algumas situações o que levou a que fosse proposta como alternativa terapêutica em doentes específicos. Vários governos, com relevância para alguns Estados dos EUA, decidiram mesmo legalizar o uso medicinal da Cannabis. Seguindo essa tendência, o BE e o PAN apresentaram Projectos de Lei com a intenção de legalizar o uso médico, sob prescrição, da Cannabis e o PCP apresentou um Projecto de Resolução sobre o mesmo tema.

Todas as propostas são relevantes e atempadas. Devem ser discutidas sem preconceito e longe de qualquer ideologia política. O que interessa é saber se há uma “necessidade não satisfeita” (unmet need) para doentes que precisem, sem nenhuma melhor alternativa, de ser tratados com Cannabis bruta, em estado puro, em vez de com medicamentos de fabrico, qualidade e dosagem controlada. Interessa também saber se os efeitos tóxicos, a curto, médio e longo prazo, da Cannabis (comprovadamente cancerígena e responsável pela emergência de psicoses, além de outros efeitos adversos), são mais relevantes do que o potencial benefício terapêutico.

No caso da Cannabis, há uma enorme ignorância sobre os seus efeitos benéficos, sabendo-se mais sobre os riscos. Faltam estudos controlados e quase toda a evidência é anedótica e não comparável. Em boa verdade, a legalização da Cannabis nos EUA resultou mais da incapacidade do sistema de saúde para pagar medicamentos eficazes e dispendiosos do que de uma necessidade terapêutica real. Acresce que a fitoterapia sofre de problemas que se prendem com a falta de estandardização do lote e a variabilidade da estirpe das plantas em termos de composição e das quantidades de substâncias ativas presentes.

Há questões complexas a que o legislador precisa de responder. Como se doseia a Cannabis? Quanto vale um charro em termos farmacológicos? Será mais importante o THC ou o canabidiol? E qual o papel dos outros 100 compostos? Aceita-se que um médico possa prescrever a “pedra” com tabaco ou só pode fazê-lo se for para fumar a folha da “erva” sem mais plantas combustíveis? Haverá lugar a uma oportunidade de negócio com cigarros electrónicos cheios de solução “canabinada”? A ganza vai ser comparticipado? Se for eficaz, porque não? E depois, comparticipam-se outras plantas? Vamos regressar ao chá de dedaleira para tratar a insuficiência cardíaca ou a fibrilação auricular, em vez de digoxina ou de fármacos mais modernos e menos tóxicos, ao láudano para a dor, em vez da morfina, ao hipericão para a depressão, em vez dos inibidores da recaptação da serotonina? Ao Pau d’Arco para o cancro, pese embora a suposta atividade anti-neoplásica das lapachonas, presentes em algumas espécies do género Tabebuia, ainda não ser convincente? Não me parece.

Quem deve ser “medicado” com Cannabis? Uma autorização abstracta, sem que se definam claramente os potenciais beneficiários, remetendo para Portaria, é pura demagogia e irresponsabilidade legislativa. Eu devo um pedido de desculpas a quem tem tido a gentileza de me ler neste jornal. Não raras vezes cometo erros de sintaxe, salto letras, falho artigos, baralho a pontuação e até, que vergonha, há erros de ortografia que só constato no texto publicado. Nunca acerto no acordo ortográfico. Mudo de computador e de corrector e lá sai asneira. Revejo mal no écran. Não faço melhor no papel. Dactilografo mal. Portanto, sou dis-gráfico e dis-léxico. Acho que sou apenas dis-traído. Irrequieto, faço muita coisa ao mesmo tempo e, acredito eu, com qualidade razoável.

Nos tempos de hoje, tivesse eu sido consultado por um esculápio mais fundamentalista, já estaria a metilfenidato. Não digo que não me fizesse bem, mas seria mesmo necessário? Afinal, quantas pessoas, talvez doentes, passarão a levar a prescrição de maconha sem dela precisarem? Num País onde se prescrevem e consomem, de forma absurdamente elevada, benzodiazepinas e outros calmantes, podemos confiar na prescrição controlada de Cannabis? Ou vamos ter um grupo de Colegas autorizados a “passar” haxixe, uma espécie de charrologistas?

Os projectos de diplomas do BE e do PAN enfermam de várias deficiências que aconselham a sua reprovação. Têm o mérito de levantar a discussão do tema mas são superficiais na abordagem, pouco rigorosos nas soluções técnicas, omissos quanto ao controlo da qualidade e definição do produto a prescrever (Cannabis há muitas…) e assumem um pressuposto de necessidade terapêutica ainda não respondida que, provavelmente, não é verdadeiro.

Além do mais, o parlamento não possui os meios técnicos, nem o conhecimento, para se pronunciar sobre uma matéria de medicamentos para uso humano, pelo que caberá ao INFARMED, coadjuvado pelo SICAD e pela DGS, a emissão de proposta legislativa sobre este tema. Muito mais prudente e séria é a proposta do PCP que recomenda o estudo do assunto, assume a preocupação com o fenómeno da toxicodependência, e só peca por não obrigar o Governo a um calendário de resposta e a uma proposta legislativa, caso se confirme a necessidade de legalizar as plantas do género Cannabis para fins terapêuticos.

Em Portugal cultiva-se Cannabis e Papaver para efeitos de produção industrial de medicamentos e de isolantes térmicos sob a forma de cânhamo prensado. Há carros de luxo, não digo a marca, que têm Cannabis prensada nas portas, no tablier, etc. É leve e resistente. Fui um dos responsáveis pela emissão das autorizações.

Tive de tentar convencer, sem sucesso, os responsáveis da ONU sobre a bondade das nossas intenções. O United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) opôs-se liminarmente a esta nossa decisão que, no entender desta agência, violava uma convenção internacional de que Portugal é signatário. Fui a Viena, como se exigia, ouvir e assumir as críticas públicas que o UNODC dirigiu a Portugal. A evidência que nos sustentava, as garantias de segurança anti-crime, o uso estritamente legal das plantas a cultivadas, a necessidade de suplementar stocks de opiáceos em falta e o facto de se tratar de Cannabis pobre em THC e rica em canabidiol, levaram a que o Governo PSD/CDS assumisse a autorização. Fizemos bem.

Os amigos dos animais e os congéneres bloquistas ficaram-se pelo sofisma “medicinal” cuja racionalidade não sustentam nas suas propostas. O que os documentos do BE e PAN, na senda da “modernidade” com que se disfarça a esquerda mais radical e arcaica, quereriam propor, sem subterfúgios, seria a legalização do uso de Cannabis para todos os fins, começando pelos melhor comprovados, como são a diminuição da consciência e a sedação. Essa proposta ainda será feita e deverá ser profundamente discutida, sem dogmas.

Há experiências internacionais, tal como para o dito uso “terapêutico”, que merecem ser avaliadas. Todavia, quando em Portugal somos excessivamente permissivos face aos danos provocados pelo mais usado dos psicotrópicos recreativos e geradores de dependência, o álcool, na população em geral e nos jovens em particular, nem somos capazes de implementar medidas de controlo sobre a publicidade e venda das bebidas contendo essa substância, vejo com grande receio a legalização da venda de marijuana cujo consumo já não é, felizmente, crime.

O problema da legalização da venda de produtos com Cannabis, que só fará sentido se for incluído o seu uso “recreativo”, tem de ser encarado em paralelo com as medidas de controlo do consumo de álcool e a avaliação da sua eficácia. Não haverá o risco de, ao legalizar a venda da Cannabis, dar um sinal de baixa perigosidade para uma planta que tem muitos problemas associados ao seu consumo? Fizemos isso com o tabaco e a lição, bem dura, chegou demasiado tarde. Confesso que ainda não decidi se estou a favor ou contra mas deixo já um contributo técnico, mais um dos que verdadeiramente contarão na hora da decisão. Um estudo, ainda que com limitações, publicado em novembro deste ano no American Journal of Public Health, reconhece que o número de mortes por overdose de opiáceos diminuiu no Colorado, depois da legalização da marijuana recreativa. Será mesmo assim? Será assim em todo o lado? Este possível benefício compensará outros riscos?

Deixo-vos com a sábia recomendação da Organização Mundial de Saúde, publicada em 2015, num documento intitulado Update of Cannabis and its medical use, de Bertha Madras, Professora de Psicobiologia em Harvard e que está disponível na internet… rigorous criteria for its approval as a safe and effective medicine need to be fulfilled, along with a meticulous cost-benefit analysis to weigh its therapeutic potential alongside it detrimental effects to individuals and to society. A aprovação da Cannabis como medicamento deve cumprir critérios rigorosos de segurança e efectividade, bem como uma análise meticulosa de custos e benefícios de forma a sopesar o potencial terapêutico em comparação com os efeitos deletérios para os indivíduos e a sociedade. Faça-se isso, como o PCP propõe, antes de se propor a legalização, seja para que fim for.