Recomeça a estação em que nos relatos de futebol se exercita a condescendência; é previsto que todas as nossas vitórias sobre as equipas mais fracas serão pelo menos por dois dígitos. Somos avisados da situação desde o primeiro minuto de cada relato, e em termos que não oferecem dúvidas; é intimado que se trata de uma questão de direito natural, e por isso de desígnio nacional: quem, afinal, mandou aos fracos serem fracos? E, como se isso não fosse suficiente, meterem-se com os fortes?

O espectáculo de ver Portugal derrotar o Gerolstein ou o Homburgo em jogos de futebol é bem preparado pelos entendidos, e bem entendido pelos espectadores; o patriotismo dos portugueses é o resultado dessas duas actividades. Nos grandes dias, na tribuna, o grão-duque de Portugal trata o rei do Gerolstein com afabilidade: ‘Bem percebe, meu caro rei, que somos os descendentes de Dom Pedro de Alfarrobeira, que fez sete partidas ao mundo. ’ A frase ouve-se depois em vernáculo pelos estádios; e impera nessas alturas por toda a parte uma alegria selvagem.

A condescendência para com os menos aptos só se exerce com proveito sobre terceiros. Quando se lhes lembra o aconchego em que vivem os naturais do Homburgo e do Gerolstein, os portugueses descobrem no seu desconforto relativo uma injustiça histórica; e exigem e contam com uma reparação financeira por parte dos ofensores. Fossem esses ofensores dados à troça, e se aventurassem a observações sobre as suas vitórias por mais de dois dígitos em certas matérias de conforto, seriam considerados cruéis e desnecessários.

Os portugueses acreditam com prudência que situações diferentes requerem critérios diferentes; e que, sendo o seu embaraço sempre o resultado das acções detestáveis de quem os embaraça, a sua condescendência em relação a outras pessoas, pelas vias do comentário desportivo, da meteorologia, da história, ou até do futebol, da poesia, ou do atum, é uma manifestação de jovialidade inofensiva que ninguém bem formado poderá levar a mal. Trata-se do estado mental português a que as academias chamam hostilidade ao subcão. O subcão são os menos aptos e por isso, como afirmou o filósofo, o subcão são os outros.

Falar de cães e subcães parece uma metáfora, e um entretém de zaratustras. Existe no entanto outra actividade que em Portugal confirma o estado mental: o modo desprendido como se abandonam pelos silvados cães coxos, velhos, feios, ou simplesmente incómodos ou abundantes. Com razão essa crueldade ocasiona compunção; mas nas florestas portuguesas os cães placidamente continuam a fazer a toca nos tambores das máquinas de lavar. O motivo não pode deixar de ser a hostilidade ubíqua ao subcão que perdura entre nós: as pessoas que deixam com condescendência os cães pelos valados são as mesmas que acham que é um desígnio nacional fazer o Homburgo perder por muitos.

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