Caro António Barreto,

À falta de amigos comuns, venho aproveitar-me do Observador para o convidar para um café. No artigo que escreveu no Público afirmou taxativamente que não há cidadãos europeus, apenas nacionais. Estranha-me muitíssimo que nunca tenha conhecido um cidadão europeu, mas proponho-me desde já e com todo o gosto resolver essa questão: Ana Rosado, cidadã europeia, muito prazer. Como tem passado? Convido-o para um café e já poderá incluir cidadãos europeus na sua lista de conhecimentos.

Sim, cidadã europeia, desejosa que me chegue um documento de identificação europeu para acabar com o caos de bi’s, dni’s e passaportes vários que é a minha carteira. Já sei que está a pensar, os cidadãos europeus também terão de ser cidadãos nacionais. Talvez, mas e de que nação? Eu não consigo dizer-lhe qual seria a minha nacionalidade. É que, sabe, sou sevilhana, natural de Borba, o meu avô era de Estremoz, a minha avó de Sevilha mas foi viver para Portugal, nunca aprendeu português sequer, mas o avô da minha avó espanhola era de Setúbal. Nem que seja para o poupar a esta longa, confusa, e desinteressante explicação, sou europeia. Podia ser simplesmente ibérica, dizer que o meu lar é o sudoeste da península, e já aí teria o meu país dividido por uma linha imaginária, sem entrar numa categoria canónica de nação.

Mas há mais, fui de Erasmus, fiquei a viver na Áustria, e a minha cidade passou a ser Graz. Não abdico de Glühwein na lista do meu património gastronómico e estou há tanto tempo sem ir a esta minha terra que tenho saudades físicas. É possível que lhe soe ao idealismo que criticava no artigo de domingo, mas garanto-lhe que lhe expus factos objectivos sem ânimo de romanticismo.

Não se trata se ser europeu contra uma identidade nacional. Sociedades sem fronteiras não são o mesmo que sociedades sem identidade. Ser europeu é a sobreposição de muitos factores identitários. Qualquer português pode sentir-se europeu, sem deixar de sentir-se português. Mas cada vez mais gente, entre os quais me incluo, não temos (em abono da verdade, nem queremos muito) ter uma simples identidade nacional limitada a umas linhas imaginárias previamente traçadas. E se é possível compatibilizar uma cidadania nacional dentro de uma cidadania europeia, o que é de facto antagónico é a acumulação de várias identidades nacionais que essas sim, vão contra umas às outras.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sabe o que custa ser portuguesa, nas ocasiões em que ser português passa muito por “não ser espanhol”, sendo espanhola? Quando somos imunes à falácia de que o “estrangeiro” é o inimigo, porque também somos esse estrangeiro, torna-se muito fácil perceber uma coisa simples. As simplificações nacionalistas são uma terrível mentira. Somos todos o mesmo povo e querem separar-nos. Divide et impera.

O melhor legado da geração erasmus e interrrail é que nós, “cidadãos nacionais”, nos fomos conhecendo uns aos outros, e descobrimos que não éramos diferentes. Temos as mesmas preocupações – oportunidades, emprego, migrações, ambiente, proteção de dados, … – e nenhuma se confina a uma esfera nacional. Comemos diferente, falamos diferente. Mas porque raio é que isso alguma vez deveria significar direitos e oportunidades diferentes?

Não reclamo a invenção da cidadania europeia para a minha geração; sempre houve cidadãos europeus dentro das elites que podiam viajar. Mas o final do séc. XX e o estado de bem-estar europeu democratizaram a cidadania europeia. E um cidadão europeu não pode abdicar de partes da sua identidade para ser apenas de um país. As grandes divisões nacionais europeias – nem falemos da desagregação do império austro-húngaro – foram desenhadas quando o mundo não ia muito mais longe que as imediações da bacia do Mediterrâneo e faziam sentido nessa geografia. O mundo é hoje muito maior, e a esta escala, só tem sentido um bloco europeu. A integração europeia far-se-á. Podemos ignorá-lo, como pretendem os nacionalistas e deixar que outros o façam contra os nossos interesses, ou tomar controlo sobre o destino da Europa, sobre o nosso futuro como cidadãos e construir a Europa que queremos.

Pois sim, faz falta mais Europa. Faz falta mais representação dos cidadãos na Europa. Por favor, vamos discutir a Europa. O todo e as partes. Essa Europa que, como o Alentejo, não tem representação nos parlamentos nacionais e tem sobrevivido ao abandono com fundos estruturais e planos de desenvolvimento europeus. Como queremos organizar a Europa? Que instituições e como se elegem os representantes? Como queremos distribuir e hierarquizar poder e meios? Como assegurar instituições europeias verdadeiramente democráticas?

Essa Europa que ainda é invejável pela cultura, pela protecção social, pelos direitos dos cidadãos e pela paz. Mas já não o é na ciência, na tecnologia, na inovação, na economia, na produtividade, na defesa e na força política no mundo. Faz lembrar A Vida de Brian: “All right, but apart from the sanitation, the medicine, education, wine, public order, irrigation, roads, the fresh-water system, and public health, what have the Romans ever done for us? Brought peace?”

Como democrata aceito muitas visões e opiniões para a Europa que não são necessariamente as minhas. Menos uma: que não exista União Europeia. Sabe que, quando temos paz, direitos, protecção social e cultura, parece-me que temos muitíssimo. E podemos conseguir tudo o resto se estivermos dispostos a trabalhar juntos e a comunicação depende menos de um idioma comum ou 24 idiomas oficiais do que da vontade de escutar os outros. A Europa é muito mais que uma união de estados, é um projecto de sociedade de direitos iguais para todos os cidadãos. De certeza que lhe parece horrivelmente idealista, mas ainda que o caminho seja longo, a direcção é mais União Europeia e a maioria quer esse caminho.

Se havia dúvidas, hoje já temos partidos europeus transnacionais a defender uma construção democrática europeia. Bem-vindo à Europa

Candidata às eleições europeias do Volt em Espanha