Talvez eu devesse começar pedindo desculpas. Porque, sabem como é, eu sou filha. E, em geral, os filhos sabem que quase sempre há alguma razão para pedir desculpas. Não retornamos uma ligação, não demos a atenção que um certo assunto merecia, não acertámos alguma conta que ficou pendente, não devolvemos um tupperware que levámos para nossa casa com um pedaço de lasanha.

Sim, acho que devo começar pedindo desculpas. Mas talvez por mais do que meras ligações perdidas, valores não reembolsados e potes desaparecidos. Começo pedindo desculpas pelas preocupações que dei a vocês em 2020. E eu sei que os pais, depois que nós nascemos, nunca mais deixam de se preocupar. Mas também sei que neste ano a coisa ganhou contornos diferentes.

Muito se fala sobre o quão preocupados os filhos ficaram com a saúde dos pais em meio à pandemia. Mas pouco se fala sobre o quanto os pais passaram a se preocupar ainda mais com seus filhos neste cruel 2020. E por muitas razões: o trabalho, os relacionamentos, a gestão familiar, a gestão da casa, a saúde física, a saúde financeira, a saúde mental.

A verdade é que eu sei que vocês não se preocuparam comigo. Foi mais do que isso. Vocês sofreram. Sofreram a cada vez que me ligaram e a minha voz não estava boa, a cada vez que notaram as respostas curtas, a cada vez que eu dizia um falso “tudo bem” no qual vocês jamais acreditariam. Uma vez, eu li que a gente só pode se considerar adulto quando desenvolvemos a capacidade de não chorar na frente dos pais para não preocupá-los, em vez de ir correndo buscar seus abraços aos soluços. E eu peço desculpas se em 2020 não fui muito hábil na arte de disfarçar a minha tristeza.

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Me pergunto quantas das suas dores nas costas, quantas das suas alergias de pele, quantas das noites mal dormidas, quantas das alterações de pressão que vocês tiveram em 2020 não foram causadas por mim. Ou pelos meus irmãos. É muito fácil colocar tudo na conta do isolamento e da tensão com a Covid. Mas a verdade é que há muito de nós, filhos, em cada uma dessas dores. E por isso, eu peço desculpas.

Este ano, no qual a protagonista foi essa tal de morte, todos fomos confrontados com o pavor de perder quem amamos. E, sim, esta é uma doença que costuma ser mais cruel com os mais velhos. Mas sei bem que vocês não se limitaram ao medo de morrer. Vocês tiveram (e têm) medo de nos perder também. A cada notícia de morte de alguém de 25, 34, 46 anos, vocês respiraram fundo. E se pensar em perder os pais dói, pensar em perder os filhos é um verdadeiro terror. E também por isso eu peço desculpas. Por cada vez que fui a um restaurante ou que encontrei dois ou três amigos e que, mesmo sem querer, deixei vocês com medo de me perder.

Eu costumo me considerar uma boa filha. Cheia de falhas, mas boa filha. Mas este ano falhei mais do que o habitual. Não dei conta, liguei chorando, pedi colo quando vocês já não deveriam ter que lidar com mais demandas. Eu juro que tentei evitar. Ajeitei a voz antes de atender o telefone, mandei gifs divertidos para maquiar a tristeza, desviei os assuntos para tentar não transparecer angústia. Mas eu sei que não deu. Vocês têm esse péssimo hábito de saber tudo e de não cair em nenhuma das armadilhas infantis às quais recorremos.

E então eu peço desculpas. Mas eu também agradeço. Agradeço por estarem aqui, por se cuidarem, por cuidarem de mim. Agradeço o olhar atento, a acolhida permanente, as mãos sempre estendidas, mesmo que de longe. Agradeço, com tudo o que há de mais verdadeiro em mim. No ano que vem, pretendo ser a cura das dores e não a razão delas. Vocês merecem mais do que isso.