Escrevo a pensar nos pais de uma filha que não conheci, mas de quem guardo verdadeiras lições de vida. O testemunho da Carolina, depois de saber o diagnóstico da sua doença, não foi apenas comovente, foi verdadeiramente iluminante. Interpelador e transformador.

O realismo e a capacidade de aceitação da Carolina, confrontada aos 25 anos com um cancro terminal, tocaram as fibras mais sensíveis dos que a viram e ouviram nos media, mas certamente tocaram ainda mais aqueles que tiveram o privilégio de a acompanhar de perto nesta derradeira fase.

Privilégio é uma palavra demasiado pequena para a dimensão do dom que foi a sua vida, mas também do extraordinário dom de ser mãe e pai de uma pessoa com a grandeza de coração e a elevação moral, intelectual e espiritual da Carolina. O espírito com que viveu depois do choque das más notícias, revela a grandeza de que falo e transparecia, inteira, no seu olhar e na maneira como falava, sempre a sorrir.

O país inteiro comoveu-se com a história da Carolina quando soube, por ela, que tinha a vida a prazo e o seu tempo era já muito breve. Não vi nem ouvi a Carolina falar antes do dia da sua partida, mas nesse mesmo dia chegaram-me os ecos da sua voz, a sua imagem cheia de beleza, os seus olhos lindos, magnéticos e profundos, o seu testemunho corajoso e livre, na primeira pessoa.

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Soube pouco depois que era amiga chegada de uma jovem amiga minha que, tal como ela, também frequentou o Conservatório Nacional de Dança, em Lisboa. Seguiram ambas para Roterdão, onde frequentaram ao mesmo tempo o curso de Artes Performativas na Universidade Codarts. Reforçaram ali os laços que as uniam e consolidaram uma amizade entre bailarinas, num tempo e numa circunstância de grande exigência física e anímica.

Ser bailarina profissional não é para qualquer uma, sabemos isso. Ter uma carreira internacional implica sempre um esforço brutal, mas a Carolina estava disposta a fazer carreira. Até ao dia em que, tendo cumprido 22 anos, repensou tudo e tomou a decisão de voltar ao seu país.

“Precisava de olhar para o meu corpo com outros olhos, de colocar a minha preocupação com a beleza interior no mesmo patamar em que estava a minha preocupação com a beleza exterior.”

A citação é de Catarina Aires, a bailarina que primeiro estudou com Carolina no Conservatório de Lisboa e, depois, na Universidade Codarts, e agora prestou tributo à sua querida amiga dançando para ela e escrevendo um texto que partilhou nas redes sociais.

De tudo o ouvi à Carolina Gil, na entrevista que deu à Cristina Ferreira, guardo o que me parece essencial e porventura mais inspirador por podermos aplicar à nossa própria existência.

“Estou consciente da minha realidade. Ser realista é estar consciente, é saber a minha própria história. A partir daí posso trabalhar a aceitação.”

Ser realista não é nem nunca será perder a esperança e isso ficou muito claro. Os olhos da Carolina tinham um brilho especial e brilhavam ainda mais quando reforçava que a esperança passa sempre por aceitar a realidade. Isso sim, dava-lhe ânimo e alento para continuar de pé. Para acordar e dizer o seu ‘uau!’ matinal, de quem valoriza cada dia, cada hora.

“A partir da aceitação consigo ser positiva e esperar fazer o melhor que posso até partir. Todos sabemos que temos um fim, mas o que verdadeiramente conta é o meio”.

O sorriso da Carolina era constante e continuará, para sempre, a ser desarmante. Desarma-nos porque nos mostra uma dimensão desconhecida para quem não vive o que ela viveu. A Carolina falava da sua realidade, chamava as coisas pelos nomes, não evitava os temas difíceis nem se esquivava a falar do prazo curto que os médicos lhe deram, mas tudo era dito a sorrir, com essa ternura e essa autenticidade desarmantes, insisto, capazes de rasgar horizontes e de nos levar mais longe e mais alto.

A sua beleza e a sua juventude também ficam a fazer eco em nós. Ninguém quer morrer aos 26 anos e esta sua aceitação, assim como a capacidade de se elevar acima das suas circunstâncias obrigam-nos a relativizar muita coisa e, acima de tudo, ajudam-nos encarar as nossas próprias adversidades sem perdermos a capacidade de acreditar.

E a Carolina acreditou e valorizou a vida até ao último minuto. Nunca desistiu. Sorriu sempre, porque para ela tudo era como um espelho.

“Acredito que se eu estiver a sorrir, o mundo vai-me sorrir de volta. E tem-me sorrido imenso. Estou espantada com a energia que tenho recebido das pessoas. As pessoas são boas. Quanto mais amor dermos, mais recebemos.”

Esta foi a experiência da Carolina desde criança. Não apenas enquanto durou a sua doença, mas ao longo da sua breve e intensa vida, pois todos lhe reconhecem o entusiasmo, a paixão, a generosidade, a atitude positiva, a ternura, a bondade, a inteligência, o brilho, os múltiplos talentos e o espírito de serviço aos outros.

Começou a dançar aos 3 anos, na Casa da Árvore, no Restelo, e aos 6 entrou no Conservatório Nacional de Dança. Aos 14 partiu para França, para estudar na Escola Superior de Dança Rosella Hightower. Dos 19 aos 22 frequentou o curso de Artes Performativas na Universidade Codarts, Roterdão e decidiu voltar a Portugal. Aqui continuou a dançar e a dar aulas de Pilates. Dizia, com graça, que tinha um sangue ‘tipo D, de dança’, porque lhe corria nas veias a paixão pela dança.

Termino como comecei, a pensar nos pais da Carolina, no irmão de quem ela falou com tanta cumplicidade, orgulho e alegria, nos familiares e amigos, enfim em todos os que a conheceram e amaram. Penso em cada um com a certeza de que sofrem a brutalidade da sua ausência, a barbaridade da sua partida prematura. Sabemos que a morte de um filho não é natural e Luís Gil, o pai, disse e repetiu isto mesmo.

A morte de um filho é uma dor que o tempo não cura nem apaga, mas talvez possa vir algum consolo da certeza de que há vidas longas que não chegam a tocar tantas pessoas como as que a Carolina tocou e transformou. Eu, que nunca a conheci, agradeço tudo o que me deixou e ficará comigo para sempre.