1. Nada substitui o “in loco” nem o caçar com mão própria o ar do tempo. Exit mensageiros. Madrid dar-me-ia pelo menos um vislumbre do novelo em que a Espanha se enrola, com tantas meadas por desatar, já lá vão semanas após os votos e as urnas da consulta eleitoral. As coisas por aqui estão pesadas: o impasse produzido pelos resultados eleitorais e o tremor de terra catalão – cujos termómetros registaram um grau de destruição devastador – mantêm a política encalhada. Uma simultaneidade perigosa.

Já houvera a fulgurante entrada de “estranhos” na paisagem partidária – o Cuidadanos e o Podemos –, provocando o talvez irreversível fim do bi-partidarismo entre um cansado e corrupto PP e um enfraquecido e desnorteado PSOE e levando a Espanha a desaguar num mar eleitoral inconclusivo. Em vez da desejada maioria – ou ao menos, de uma réstia de harmonia política –, há agora estados de alma veementes, recusas taxativas, portas que ora se abrem,ora se fecham, hesitações sem fim.

Entre a real ameaça soberanista soprada da Catalunha e a incerteza da viabilização de um acordo politico, à hora que escrevo, um futuro governo parece uma miragem e a manutenção da integridade do estado espanhol uma incerteza.

Enquanto se fazem contas, se dançam valsas-hesitação, se negoceia, nenhuma formação partidária descarta porém novas eleições, encaradas como saída de socorro, oportunidade ou esperança, é conforme os jogos privados de cada um. Mas o que interessa é que se os espanhóis claramente as rejeitam e as elites e confederações patronais prudentemente as desaconselham, os políticos não as excluem. Parecendo alguns preferir uma (previsível) incógnita aos prejuízos de toda a ordem no pulsar político, económico e social do país.

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Ninguém se entende a três, todos se entendem a dois. O Congresso dos deputados é a maior soma de minorias que alguma vez entrou naquela sala: torna as coisas quase impossíveis e tem o muro da Catalunha a dividir espíritos e convicções.

2. Já se sabe mas valerá a pena, abreviadamente, recapitular o que não mudou desde as eleições de 20 Dezembro: o PP, não desistiu do governo – nem Raroy da aplicação governamental de uma certa ideia da Espanha – mantendo-se o sonho de uma grande coligação com o Cuidadanos e PSOE ou, ao menos, com a sua benévola abstenção. Raroy estaria até dispostos a mais “cedências”do que parece, embora não o diga às claras, guardando alguns cartuchos “para mais adiante, se…” chegar a hora de um acordo para a sustentabilidade de um futuro governo “popular”. Curiosamente, Mariano Raroy tem-se porém mantido avesso – ele lá sabe? – a abrir politicamente as coordenadas do que seria um próximo Executivo seu, gesto que tem espoletado nos opositores evidentes perplexidades e públicas fúrias.

A milhas do sonho “popular” e nada disposto a bondades, o PSOE, enfraquecido e pálido, divide-se entre facções que querem a pele umas das outras enquanto o líder, Pedro Sanchez, quer salvar a sua. Chegou há pouco tempo e sorri muito. Tem pouca tarimba partidária e parlamentar, fraca mão e dizem-no tíbio. Também sonha com a Moncloa, está disposto a tudo e por ele faria “à portuguesa”, aliando-se ao diabo (o “diabo” aqui são os partidos separatistas), mas o impacto da questão catalã não parece consentir-lhe a veleidade. Pode estar a prazo. Apesar de ser mimado por Felipe Gonzalez, com quem almoça com frequência, é ensombrado pelo fantasma de Suzana Diez presidente da Andaluzia e fogosa rival, desafiado pelos barões do PSOE que contestam a sua débil liderança, olhado sem (aparentemente) grande consideração pelo Ciudadanos, humilhado pelo Podemos. E continuadamente namorado pelos populares (que espantosamente não desistem de uma coligação com ele). Vida difícil. Tanto mais que (tal como António Costa em Portugal, lembram-se?), se Sanchez não chegar ao congresso do seu partido como primeiro-ministro, receberá uma glacial ordem de marcha e ele sabe-o.

Pablo Iglesias e o Podemos – dizem-nos hoje que “estão quase social-democratas”, não dei por isso, ou estarei enganada – exibem a arrogância deslumbrada dos recém chegados ao estrelato e (misteriosamente) também a “invencibilidade”: acham-.se messiânicos, por um pouco salvariam a Espanha e o mundo. Simpatizam pouco com as leis e regras do Estado de Direito e os rituais, hierarquias e práticas da democracia e por eles expulsariam de vez a direita do universo político espanhol. Desprezam e namoram ao mesmo tempo o PSOE, são ambíguos com os Cuidadanos. Apesar do excesso de à vontade e do déficit de boas maneiras, são hábeis, lestos e deixaram indiscutível impressão digital no país. Dizem não querer a independência da Catalunha, mas são intransigentes na defesa de uma referendo “legal” (categoricamente recusado pelos outros três partidos, com palavras pouco meigas).

Oriundo da Catalunha, Alberto Rivera, (Cuidadanos), trinta e seis anos, tem a questão catalã firmíssima na mente e na bandeira – elegeu-a como “deixa” política para entrar no palco nacional – e há dias, na abertura das Cortes, foi da defesa da unidade da Espanha que falou. Sóbrio, reservado, praticante dos pequenos passos, tem uma aliada de peso, a mediática Inês Arrimadas, deputada do Cuidadanos e líder da oposição no parlamento da Catalunha. A liderança de Rivera, orientada pela busca de “pactos” , a defesa do diálogo inter-partidário e um manifesto empenho nos consensos fizeram dele um “parceiro”.

Os Ciudadanos integrariam ou apoiariam um governo com o PP e com o PSOE… mas como os socialistas recusam em absoluto o regresso da direita ao poder – pior, se legitimada por eles –, rejeitando qualquer alínea da sua anterior governação, o impasse permanece. Haverá ainda a possibilidade – e porventura o desejo – de combinações com as pequenas formações de extrema-esquerda, mas tudo indica que grande jogo político (governação incluída) vá ser jogado entre este quarteto partidário.

A próxima estação é no Palácio da Zarzuela onde esta semana o Rei Felipe VI irá confessar os líderes partidários. Não lhe competindo absolvições e muito menos escolhas, não deixará de ser escutado, nem as suas palavras ponderadas.

3. O primeiro acordo de legislatura trouxe novidade e surpresa – não se estranhando nem uma, nem outra, nos tempos que aqui correm. Novidade: a eleição para a presidência da mesa do Congresso (o Senado é maioritariamente “popular”) de alguém fora das fileiras do partido mais votado (PP), como foi regra, durante três décadas. A escolha recaiu em Patxi Lopez, (PSOE) um basco duro de roer , socialista histórico , ex governante do Pais Basco e com boa aceitação nacional.

A surpresa foi o acordo obtido para a eleição de Lopez e para a mesa do Congresso. Um “pacto” negociado pessoalmente por Alberto Rivera: à direita com o PP, à esquerda com o PSOE, cada um à vez, bem entendido. Rivera obteve duas vitórias junto do PP (a não apresentação, como lhe competia eleitoralmente, de um candidato ao cargo de terceira figura do Estado; e a sua abstenção na votação de Patxi Lopez, vista como um gesto de boa vontade, com esperançosos olhos postos nas semanas seguintes) e ganhou o agrado de Pedro Sanchez com este tão vantajoso desfecho político para o PSOE.

A resposta do Podemos desconcertou – pelo despropósito – tanto quanto enfureceu – pela arrogância – os seus interlocutores. Iglésias propunha como moeda de troca vir a dispôr de quatro grupos parlamentares. Quatro e todos diferentes: o seu, em nome próprio, e os das 3 candidaturas com que se apresentou em Valência, na Galizia e Catalunha, coligado com formações de esquerda locais. O regimento parlamentar vetou-lhe tão insólita pretensão o que teve como imediata consequência que Pablo Iglésias se tenha visto excluído da primeira grande iniciativa política da nova legislatura. Daí às acusações e insinuações foi um passo. Previsível, aliás, como quase sempre com o personagem.

A Espanha foi porém rapidamente avisada de que a bem sucedida eleição da mesa do Congresso “não antevinha” – Rivera dixit – nenhum acordo para um futuro governo. O que espantará, pela absoluta necessidade do contrário: há reformas – dizem eles – “inadiáveis”; urge um orçamento e haveria “necessidade” de iniciar um processo de revisão constitucional, actualmente muito reclamado nos meios políticos, nas elites, na media.

Agenda mínima, compromissos máximos.

4. O tom não destoou: o circo dos radicais, na abertura das Cortes, não caiu bem. O Podemos acelerou no pedal revolucionário, com os adereços respectivos: punhos erguidos, sinais de vitória com os dedos, alguma violência formal, mochilas, jeans, rabos de cavalo, brincos, blusões (ignoravam que havia bengaleiro no edifício), um bebé ao colo da mãe deputada que mamou no hemiciclo, apesar de haver “guarderia” infantil no edifício. Vivem o espectáculo como fermento da política, são exímios na sua encenação e produção. Histriónicos e estridentes, faziam alarde na palavra e na gesticulação mais que na responsabilidade parlamentar.

Outras formações á esquerda da esquerda vieram de bicicleta, outras ainda, com uma charanga. Meses antes protestavam na rua, hoje trouxeram com eles a rua para o parlamento. Horrorizaram obviamente o PP – Raroy olhava-os como se estivesse noutro mundo e não noutra legislatura –, mas terão embaraçado ainda mais o PSOE. Era ostensivo o constrangimento socialista face ao tom de algumas exigências e ao anúncio de algumas intenções, (“acataremos a Constituição mas para mudá-la”) vindas de possíveis futuros parceiros governamentais. Um bom observador dizia que Pablo Iglesias e os seus “se comportavam como se Franco tivesse morrido na véspera, o país tivesse acabado de sair de uma ditadura e os espanhóis estivessem à espera do Podemos para serem finalmente felizes.

Rivera, fato, gravata e ar de filho de família, parecia um menino de coro, agarrado à sua moção sobre a integridade do Estado espanhol. Olhando para ele, ninguém diria que horas antes produzira, agilizara e interviera num acordo político que deixará marca no futuro. As aparências sempre iludiram.

5. Posso chamar impasse, confronto, incerteza, ameaça de desintegração ao que vejo e ao que me diz quem sabe. Mas há dois homens cujo verbo e gestos políticos sinalizam bem aquilo que aqui vai ocorrendo, paredes meias conosco.

Nada une esses homens, pelo contrário, e por isso são um bom espelho do momento que a Espanha vive hoje: um é basco, chama-se Patxi Lpopez e já acima aludi a ele, como inesperado recém eleito presidente do Congresso. Tem 56 anos, autoridade própria, os ossos rijos de anos de serviço político duro na liderança do País Basco. Não tropeça nas palavras, como agora na abertura das Cortes onde invectivou o Podemos (“ têm uma aposta soberanista em vez de social”; “querem muito uma alternativa à direita, mas impondo condições que subvertem essa alternativa…”). Apelou a acordos e pactos (sem novidade, recusou qualquer apoio socialista ao PP), e anunciou o seu compromisso “irrenunciável” com “a unidade e a integridade da Espanha” ameaçada pelas pretensões soberanistas da Catalunha. E mesmo que o caminho do PSOE tenha de passar um dia pela porta do Podemos, Lopez separou águas. (Ao contrário de Pedro Sanchez que, para sobreviver, vai dando ao Podemos, de quem precisa – e de quem nunca desistiu –, uma no cravo outra na ferradura… ) Cito-o porque me pareceu um possível bom exemplo de critério, solidez, autoridade, sentido de Estado e defesa intransigente da sua integridade. Esses (só aparentemente) banais instrumentos de navegação da viagem que um dia terá que começar na política espanhola.

O outro homem é Carlos Puigdemont, novo presidente da Catalunha. Tal como Patxi Lopez surgiu sem pré-aviso na Generalitat catalã. Era “alcalde” de Girona e aterrou no último minuto, quando o impasse a que se chegara com Artur Mas – taxativamente recusado por um dos componentes da nova coligação governamental catalã – impunha novas eleições. Saído da cartola do anterior presidente, o mesmo Artur Mas, Puigdemont, 53 anos, farta cabeleireira, é um coelho irrequieto e inquieto. Um “pega e larga”, activo e obviamente separatista. Evoco-o aqui não só pela sua óbvia importância política, como pelo que de mais delicado, complexo e incerto ele simboliza hoje como protagonista voluntário da concretização da ameaça soberanista.

Comprometendo-se a aviar a independência da Catalunha em 18 meses, “no máximo”, Puigdemont ignorou o Rei e omitiu a Constituição no seu discurso. A passagem desta linha vermelha indica que o novo presidente do governo catalão não será fiel ás fundações do Estado espanhol. Escorando-se na “vontade do povo da Catalunha” mas invocando apenas “o ali representado naquele parlamento”, desprezando totalmente as oposições e fazendo absoluta tábua rasa dos defensores da “Espanha unida”, Puidgemont foi de imediato acusado publicamente de “traidor” em muitos quadrantes políticos. Evocou-se aliás “a inevitabilidade de consequência legais” da sua atitude e há já constitucionalistas a analisar as implicações do discurso que fez. O novo presidente proferiu-o aliás – como em 2012 o fizera já Artur Mas – com a foto do rei tapada por um cortinado. Em 2012 era Juan Carlos, em 2016 Felipe VI, mas o gesto foi o mesmo.

Com ou sem “consequências legais”, está aí uma tempestade. Perfeita?

6. O futuro? Incerto, obviamente. Modesto como resumo e trivial como conclusão.

Mas as coisas são os que são e a complexidade e a simultaneidade que marcam os dias de hoje em Espanha, não permitem certezas. Ou sequer o risco de uma aposta.

Eu não me atrevo a avançar uma, nem a fazer a outra. Mesmo que tudo acabe “em bem”, seja lá isso o que for.