Passei grande parte dos serões deste confinamento a ler cartas antigas. Centenas. Entre quem, não interessa agora que o tema aqui não é esse. Começou devagarinho, num acaso, com uma notícia de jornal e uma memória há muito conhecida e arrumada numa gaveta. Depois, a pouco e pouco, os protagonistas foram-se tornando parte do meu dia, cresceram e envelheceram, a escrita ao princípio hieroglífica tornou-se corrente e tudo, ou quase, passava ao lado naquelas horas com as “minhas cartas”. Percebi que as tinha que pôr por ordem para melhor acompanhar o percurso e o que elas me diziam. Falavam do país, da nossa história de que ele tinha feito parte, das preocupações diárias, de política em código, das camélias do jardim, dum presente que tinha chegado, de viagens que tinham sido feitas, de vida e de morte e de um tempo que já não existe. De nós. Clarividentes e nunca resignados. Quando acabam, a guerra colonial que entretanto começara estava no seu auge, os carros eram cada vez mais populares, o homem já tinha pisado a Lua e eu estava mesmo quase a aterrar neste planeta. O fio que as liga durante quase 20 anos é o da amizade e o da confiança total entre duas pessoas, que por ser tão grande o conseguem pôr por escrito sem medo, sem segundos sentidos, só com verdade. São de gerações diferentes, mas compreendem-se em tudo. A essência é a mesma. O amor a Portugal também. Talvez também por isso sejam tão actuais.

Cinquenta anos depois, aquelas cartas de um outro tempo ajudaram a pensar este novo tempo que é nosso agora. Porque as inquietações, a curiosidade, a procura da felicidade e o perceber o que ela pode ser, a ternura e o medo, o desejo que o Verão traga dias bons são intemporais. Do apelo à vacinação contra a varíola, que aparece num carimbo dos postais dos anos 60, à campanha dos nossos dias, do “fica aí no campo que estás mais à salvo da gripe”, à necessidade absoluta de parar para perceber o que se está a passar à nossa volta, afinal o mundo não mudou tanto assim. E os laços que se fazem com os fios que vamos construindo são mesmo aqueles que valem a pena. Principalmente a quem, como ele diz numa das cartas, calhou ser Dom Quixote em luta constante contra os moinhos da altura, quando era (e é) tão mais fácil ser Sancho Pança. No fim, apeteceu-me dizer obrigada. Por serem assim e por terem, sem querer, deixado um testemunho tão pessoal como universal daquilo que se deve ser.

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