A consulta de domingo na Catalunha foi, do ponto de vista independentista, um fracasso relativo que se tem tentado mitigar evocando os cerca de 80% de votantes que terão dito “sim” à criação de um estado catalão independente. No entanto, a participação popular não ultrapassou os valores esperados. Talvez por a consulta constituir de um acto simbólico, não vinculativo, e, portanto, não suficientemente mobilizador, ou talvez porque, de facto, para a maior parte dos eleitores catalães com mais de 16 anos a causa independentista está longe de ser a que mais os preocupa, ficando atrás de muitos outros problemas, como o desemprego, a situação financeira debilitada em que se encontram o estado espanhol e muitas autonomias e municípios, ou, ainda e sobretudo, a corrupção que tem minado a credibilidade do mundo dos negócios e de toda a classe política, seja ela a das autonomias, dos municípios ou do estado.

Recorde-se, aliás, que o número de votantes no “sim-sim” (“sim” à criação de um estado catalão, e “sim” à independência), pouco menos de 1,7 milhões de votantes, ficou aquém dos votos obtidos pelas forças políticas que na Catalunha mais têm pedido a independência do território ou uma revisão substancial do estatuto de autonomia. Os 2 100 523 votos conseguidos por CiU, ERC, ICV-EUiA e CUP nas eleições de há dois anos transformaram-se em 2.236.806 de participantes na consulta de ontem, isto num universo real de 6,3 milhões de votantes.

Mas esta questão do número de votantes na consulta e de votantes no “sim-sim” é importante por mais duas razões. Demonstra, em primeiro lugar, que apesar de fraca, a votação tem sido usada como sinal de força de um independentismo para quem a realidade pura e simplesmente não existe. Ou seja, a clara debilidade do independentismo expressa na escassa participação “referendária” e no reduzido número de votos conquistados pelo “sim” não fará parar os independentistas e os que usam o independentismo para obterem o que pretendem, mesmo que sejam coisas diferentes e inconciliáveis como a independência da Catalunha, a transformação da Espanha num estado federal, a ocultação da incompetência e da corrupção de uma boa parte da classe política catalã e, por fim, o desejo de atacar e tentar enfraquecer o Partido Popular e a liderança, umas vezes lúcida, outras vezes incompetente, do Governo e do mesmo Partido Popular, tal como tem sido exercida por Mariano Rajoy.

Em segundo lugar, a questão da evidente, mas afinal eventualmente não decisiva, fragilidade do independentismo catalão coloca pelo menos mais um dilema a propósito do relativismo constitucional de que os catalães têm dado abundantemente provas. Sendo evidente que há muitos catalães e/ou muitos residentes na Catalunha que não aprovam a independência daquela comunidade autónoma ou, sequer, uma solução federal para o problema hispano-catalão, parece óbvio que a forma, no mínimo, displicente como muitos catalães olham para os preceitos constitucionais em geral, e para a Constituição espanhola, em particular, abre a porta para que o secessionismo em algumas regiões da Catalunha esteja a ser já hoje política, moral e juridicamente legitimado pelo independentismo catalão. Só que como é óbvio, um novo estado catalão não terá relativamente àqueles que desrespeitem uma futura Constituição catalã a mesma complacência que o estado espanhol tem demonstrado relativamente aqueles que desrespeitam a Constituição espanhola. Daqui decorrerá que numa Catalunha independente instalar-se-á com facilidade um clima de desconfiança e depois de violência verbal, e finalmente de violência física, entre aqueles que pretenderão separar-se da Catalunha e aqueles que quererão garantir a unidade da Catalunha a qualquer preço. Uma situação política com estas características transformar-se-á rapidamente em guerra civil e, depois, no mínimo, num conflito militar entre aquilo que reste de Espanha e a Catalunha. Se será depois, ainda, um conflito internacional em que Itália e França poderão querer ter uma palavra a dizer será talvez já muito antever.

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Numa Catalunha independente, e vista a história recente de desprezo de muitos catalães pela Constituição espanhola e pelos princípios e normas constitucionais gerais, aquilo que importará não será tanto que Constituição terão os catalães e a Catalunha mas, sobretudo, que validade política, jurídica e moral terá um texto constitucional catalão (note-se que a Catalunha, como as demais comunidades autónomas, possui o seu estatuto autonómico que equivale a uma Constituição regional).

Em teoria poder-se-á afirmar que terá toda a validade. Mas na verdade e, potencialmente, nenhuma. E porquê? Porque os independentistas catalães, sejam eles quantos forem, e caso consigam os seus propósitos a partir do processo reiniciado a 9 de Novembro de 2014, arriscam-se a ser vistos como um conjunto de indivíduos, arquitectos de uma comunidade política nacional, que não tendo respeitado a Constituição democrática do estado espanhol, referendada por todos os espanhóis nos idos de 1978, incluindo catalães, não respeitará a Constituição catalã de uma Catalunha independente a partir do momento em que esta deixe de servir os seus propósitos e não possa ser democraticamente revista nos termos desejados por aqueles que deram início e continuidade ao processo político actualmente em marcha na Catalunha e em Espanha. Por exemplo, princípios essenciais como os relativos a direitos, liberdades e garantias poderão ser violados independentemente das disposições constitucionais.

Por outro lado, e do ponto de vista externo, um estado que nasce violando leis consensualizadas democraticamente poderá facilmente e igualmente violar tratados internacionais. Por exemplo, uma Catalunha independente resultará, também, da celebração de um tratado internacional, ou de tratados internacionais, que, entre outras obrigações, determinarão as suas fronteiras – a norte com a França, a oeste com Aragão, a sul com a comunidade valenciana e, no Mediterrâneo, com as ilhas Baleares. Sucede que o nacionalismo catalão se poderá transformar rapidamente, e por várias razões, em irredentismo. E se um novo estado nasce da violação sistemática de preceitos legais, mais fácil será que venha a desrespeitar tratados internacionais.

Mas por que razão será a Catalunha irredentista? Em primeiro lugar, porque uma Catalunha independente terá muita dificuldade em proporcionar aos catalães aquilo que lhes tem prometido para o dia depois. De facto, dificilmente os problemas económicos, financeiros, sociais e políticos da Catalunha, que são também os da Espanha e da Europa, serão resolvidos como resultado da sua independência. Em segundo, porque a Catalunha também é uma ideia assente na existência de uma língua catalã, de uma cultura catalã e de uma comunidade catalã que existe para além das actuais fronteiras da Catalunha. Esta realidade poderá alimentar e legitimar, com base na ideia da existência de uma cultura, de uma língua e de uma comunidade catalã em Perpinhão, nas ilhas Baleares, em algumas regiões orientais de Aragão e na Comunidade Valenciana, o fantasma do irredentismo que nenhuma norma jurídico-política sob a forma de tratado internacional será capaz de travar.

Embora uma independência da Catalunha assente num nacionalismo essencialmente moderado tendo em conta o perfil sociológico e ideológico dos catalães, na verdade tem sido liderado por demagogos, da esquerda, do centro e da direita, que não hesitarão em construir e usar uma teoria legitimadora da revisão das fronteiras da Catalunha que poderá exigir leviana e irresponsavelmente, por diversas vias e argumentos variados, a integração de parte de Aragão, de toda a região de Perpinhão, amputada da Catalunha por tratado de 1648, já para não falar nas ilhas Baleares e na comunidade de Valência, numa grande Catalunha.

Poder-se-á alegar que todos estes argumentos não passam de especulações ilegítimas. Não é verdade. A implosão da Jugoslávia na década de 1990 e da Sérvia já neste século têm mostrado claramente de que modo nacionalismo e irredentismo andam de mãos dadas, da mesma forma que discursos e práticas nacionalistas mais ou menos extremadas, relacionadas com independentismos recentes ou irredentismos mal resolvidos ou por resolver, fazem parte do quotidiano político-ideológico e social na Hungria, na Roménia, na Rússia, na Grécia ou na Ucrânia. Por outro lado, o nacionalismo e o independentismo basco e galego são irredentistas. Muitos bascos reclamam uma Euskal Herria independente que inclua pelo menos parte de Navarra e aquilo que consideram ser o País Basco francês. Os galegos, por seu lado, reclamam, em alguns casos, uma grande Galiza que integraria parte do principado das Astúrias e, sobretudo, regiões ocidentais de Leão, como El Bierzo ou O Berzo.

Quando as regras de um jogo não permitem obter os resultados que um dos contendores pretende, é muito tentador, e, eventualmente, compreensível que se procure mudar essas regras. O problema é quando se pretende mudá-las destruindo tanto os princípios em que eventualmente assenta o jogo, como, sobretudo, quando se procura mudar as ditas regras criando um precedente que torna, no futuro, as regras do jogo, ou de um qualquer jogo, numa simples formalidade. Quando assim é abre-se uma caixa de Pandora que permite que sejam impune e sistematicamente mudadas ou violadas todas e quaisquer regras em função da legitimidade criada para resolver, aparentemente e só, um problema particular num momento preciso.