Cenário um.
Bruxelas, sede da Comissão europeia. Um director-geral de nacionalidade alemã telefona ao chefe de unidade de uma das suas direcções e pergunta: “José, mas afinal que se passa no teu país, vai haver um governo com radicais e comunistas?”. O José diz qualquer coisa no inglês coloquial em uso desde a implosão do francês como língua franca das instituições europeias. Sem prestar atenção, o alemão remata: “Agora é que vão perceber o que é austeridade, vamos estar em cima deles!”.

Cenário dois.
Era bluff, mas já não é. E também já só acreditava sê-lo quem estivesse distraído (ou tomasse os seus desejos pela realidade): desde a noite eleitoral, quando um dos principais conselheiros de Costa publicou a título pessoal, mas sem renegar o cargo partidário, um texto a defender o acordo à esquerda, que era óbvio não se tratar de bluff. Seria quando muito uma táctica negocial, mas suficientemente performativa para abrir ao partido dois caminhos exequíveis.

É neste cenário que Costa diz a Cavaco Silva ser o mais bem colocado para formar um governo estável, como o Presidente exigiu antes das eleições e repetiu a 6 de Outubro. Cavaco hesita e evoca as linhas vermelhas que impôs nesse discurso. Mas o futuro primeiro-ministro retorque: “O PS é desde sempre o mais europeísta partido português, não serão postos em causa os nossos compromissos”. O Presidente nomeia Costa, “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (art. 187º CRP).

Toma posse o 1º governo de maioria alargada de esquerda em Portugal. Passará o programa na Assembleia (todos os deputados socialistas votarão a favor?). Passará o orçamento (com que défice?). Mistérios por desvendar, se se confirmar este cenário.

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Cenário três.
A reunião da administração começou. A empresa multinacional – em fase de expansão acelerada – vai agora decidir sobre o país em instalará a sua nova fábrica. Portugal compete com o Coisoquistão. Os administradores consultam o relatório: dos salários (altos mas ainda assim competitivos) à qualidade dos trabalhadores, acessibilidades, flexibilidade laboral e um ambiente amigo dos negócios, tudo parece favorecer Portugal. Tudo? Bem… “o governo é comunista”, diz o presidente, a apontar um trecho sublinhado a vermelho escuro. Um dos administradores, que se deu ao trabalho de pesquisar na net o que se passa no ocidente da Europa, ainda tenta explicar a situação mas a decisão está tomada: ganha o Coiso…

Cenário quatro.
Cavaco está irredutível. Não confia num governo de socialistas com (ou apoiado por) bloquistas e comunistas, que não assegura a estabilidade exigida e acabará por pôr em causa a imagem do país. Costa bem garante o contrário, mas o Presidente decidiu: nomeia Passos primeiro-ministro e encarrega-o de formar governo.

O programa do governo minoritário é rejeitado na Assembleia pelos votos conjugados de PS, Bloco e CDU. O que faz Cavaco? Considera não haver condições para uma governação estável em Portugal e, sem poder convocar eleições no último semestre do mandato, mantém em gestão o governo actual até às eleições que o próximo Presidente terá de convocar (algures entre Março e Abril, governo lá para Junho)? Ou prolongará as negociações sem dar por terminado o processo, instando a que os partidos continuem a tentar entender-se? Sabemos que o Presidente quer um entendimento dos partidos do chamado “arco da governação”. Costa acabará por ceder? Ou se não for o caso, de regresso à casa partida e finalmente convencido de que mais vale um governo impensável estável do que um normal instável (ou governo nenhum) Cavaco convida Costa a formar governo (ver cenário dois).

Cenário cinco.
Um muito jovem analista da Moody’s conversa com um mais velho analista da Moody’s. O tema é o do dia: Portugal. O jovem analista interroga o mais velho sobre as consequências do governo anunciado: socialistas, comunistas, radicais. O outro não se faz rogar: o outlook passa já a negativo, diz. E como o jovem o questione sobre as razões da mudança quando nada de fundamental se passou, o mais velho responde, citando adaptada a frase de Einstein: “Meu caro, nesta coisa das notações, e depois das lições do passado, a imaginação tornou-se mais importante do que os factos”. E a sorrir: “Imagina os comunistas no poder, ainda por cima ortodoxos; imagina as nacionalizações, o fim dos despedimentos, o poder popular”. “Mas ainda há disso?”, quer saber o outro. “Pelos vistos”. E conclui, “imagine-se!”.

Cenário seis.
A febre cresce no partido socialista: sectores seguristas – com um importante grupo de deputados no parlamento – opõem-se à maioria de esquerda. Face à pressão da oposição interna, o secretário-geral coloca em marcha o plano de contingência: o referendo interno.

Nesse caso, se os socialistas escolherem a via da normalidade votando pelas negociações com Passos (caso contrário, ver cenário dois), retomam-se as negociações, que demorarão semanas. Havendo acordo, as partes cedem e Cavaco convida Passos a formar governo, cujo programa passa na Assembleia com a abstenção dos socialistas. E temos orçamento.

Conclusão.
Quando tanto se tem falado da governabilidade, é a ingovernabilidade que nos espreita. E talvez na pior altura. Há pelo menos 2 anos que Cavaco não esconde a preferência por uma solução de consenso, de preferência de governação, entre os partidos de governo tradicionais (PSD, PP e PS). Não o conseguiu em 2013, corre o sério risco de não o conseguir em 2015.

Passos tem tempo. Paradoxalmente, qualquer um dos cenários não lhe é radicalmente desfavorável (talvez por isso mantenha uma atitude calma, quase passiva, na presente circunstância). Ele sabe-o. Um seu governo minoritário, com ou sem acordo com o PS, dificilmente durará a legislatura; mas eleições provocadas pelos socialistas (aos olhos dos eleitores) dar-lhe-ão a probabilidade de uma maioria absoluta. Em caso de governo de esquerda, basta-lhe esperar: o cimento que une os partidos em presença, PS, Bloco e PC, é tão espesso como uma fina camada de orvalho nas manhãs da serra. A hipótese de uma ruptura é mais do que hipótese. E o PSD, sem ter aos olhos do público responsabilidade nessa ruptura terá de novo fortes possibilidades de vencer novas eleições com larga maioria. E o mesmo sucede se o próximo Presidente decidir dissolver a Assembleia e convocar eleições para clarificar o ambiente político (e contribuir para o normal funcionamento das instituições).

Costa já perdeu. Sabe-o. Pode vir a ser primeiro-ministro, mas dificilmente deixará de estar a prazo. Se governar à esquerda estará sempre iminente uma ruptura, quando as exigências do Bloco e (sobretudo) dos comunistas se tornarem insuportáveis, com reflexos públicos e nas instituições. Se apoiar Passos, dificilmente escapa à demissão no anunciado congresso. O referendo interno, caso se realize, poderá salvá-lo? Poder, pode (e só por isso será feito). Mas é pouco provável. E o risco de pasokização do PS, ao contrário do que defendem alguns dos seus dirigentes, está ao virar da esquina.

O Bloco só tem a ganhar. Curioso será ver que pastas sobraçarão os membros do partido, e se farão jus à célebre frase de Clemenceau: “conheci muitos radicais ministros, mas nunca ministros radicais”.

E o PCP? Confesso que não faço a menor ideia.

Sobra o povo português. O que lhe estão a fazer não se faz: depois de 6 anos de demasia socratista e 4 de austeridade (pouco) suave, já merece descanso; e poder beneficiar do esforço e sacrifício que fez com tanta dignidade e coragem (é bom não o esquecermos). Mas à esquina (a outra esquina), espreitam já as agências de rating e os mercados em geral, atentas ao presente deste pequeno, antigo e sábio país europeu.

É caso para dizer: perdoa-lhes, povo, que eles não sabem o que fazem. Ou sabem?