Já sei que ninguém pode prever exatamente e com grande antecedência uma precipitação tão intensa como a que inundou muitas zonas de Lisboa e do centro e sul do país. Quando isso acontece em zonas de forte densidade populacional, vulneráveis a inundações, o que se pode fazer, em muitos casos, é limitar a circulação e evacuar pessoas em risco. Mas não me digam que isso é tudo o que se pode ou deve fazer. Sim, há uma dimensão de imprevisibilidade, de acumulado histórico de problemas. Mas também há, hoje e no passado recente, uma dimensão de incapacidade de planear, coordenar, estabelecer prioridades e implementar. Há também uma grande vontade de seguir em frente e esquecer o assunto, mas ele, infelizmente, não vai desaparecer ou perder importância.

É urgente comunicar melhor

Temos de melhorar a comunicação de emergência e os sistemas de alerta. Achar que as pessoas vão ativamente procurar os alertas vermelhos do IPMA é excesso de otimismo. Os SMS da proteção civil parecem-me surgir com algum atraso. As principais autoridades públicas – que tantas vezes nos brindam com comentários sobre, por exemplo, futebol – deviam ponderar dar a cara e dar outra visibilidade a estes avisos. Em situações com forte probabilidade de se tornarem realmente graves, é preciso não se ficar pelas recomendações, que só alimentam equívocos. É preciso ter a coragem de tomar a decisão de fechar serviços não essenciais nas zonas mais vulneráveis. E o problema não se reduz à comunicação.

A crise climática numa cultura avessa ao planeamento

Há anos que os cientistas do clima – sim, existem mesmo, e sabem mais do que a malta do café, embora não exista ciência estática ou cientistas infalíveis – não se cansam de repetir que um dos resultados previsíveis das alterações climáticas e da instabilidade que criam é, precisamente, a multiplicação e intensificação dos eventos climáticos extremos. Daí resultam mais ondas de calor extremo, potenciando mais incêndios de grandes dimensões e mais secas extremas. Daí resultam também mais tempestades e mais intensas, que provocam inundações massivas. E como já há uns milhares de anos que não somos pequenos bandos de caçadores nómadas, isso cria enormes riscos e problemas de adaptação.

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O que foi, então, feito para estudar a fundo as implicações deste desafio para o território nacional? Conhecemos as implicações de cenários mais pessimistas e intermédios de mudança climática para riscos de inundação, de seca e desertificação, ou de incêndios no conjunto do país? Temos trabalhos sobre boas práticas a nível internacional para melhor nos adaptarmos a estes desafios? Da Holanda, nas cheias, até a Israel, na desertificação, não faltam Estados a estudar. Temos um plano de ação nacional para, pelo menos, mitigar os piores riscos?

Alguns estudos e documentos existirão. O problema é que somos ótimos a produzir documentos estratégicos excelentes em que mais ninguém pega. Recordo o Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2013, em que colaborei, que apontava para o risco de pandemia como uma ameaça séria, e para a necessidade de um plano nacional de resposta que nunca foi feito. Estudos e lições aprendidas só são úteis se forem usadas na tomada de decisão.

Não temos um sistema nacional de gestão de crises

Não desvalorizo a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e o seu esforço de coordenação de múltiplos agentes, que fazem um trabalho muito louvável. Mas o seu papel está necessariamente limitado, desde logo por ser um órgão setorial de um ministério específico. Aquilo que as boas práticas internacionais nos mostram é que, a par deste tipo de organismo, é fundamental existir junto do chefe do executivo – o Presidente, nos EUA, ou, no caso da maioria dos países da Europa, o Primeiro-Ministro – uma célula que seja uma estrutura permanente de antecipação e coordenação da resposta a todo o tipo de crises, desde ataques armados até catástrofes naturais.

Nos EUA isso é feito pelo staff do Conselho de Segurança Nacional e respetivo coordenador. E não é por acaso que este modelo se tem espalhado nas últimas duas décadas por múltiplos países, desde a vizinha Espanha até à China. Evidentemente, isso tem sido feito com adaptações às realidades organizacionais e legais nacionais. Mas esta tendência global reflete o facto de a maioria dos Estados estarem cientes de que estamos a viver num Mundo mais perigoso, em que se multiplicam riscos e ameaças multidimensionais e transnacionais. Parece haver algum reconhecimento do problema em Portugal, com a criação de estruturas ad hoc de coordenação da resposta aos incêndios ou à pandemia. Mas estas estruturas tendem, quase naturalmente, a ficar em estado de hibernação quando as emergências desaparecem, com o risco de se perderem lições valiosas e de faltar acompanhamento prioritário das medidas de prevenção e de combate estrutural a problemas futuros. E criam ainda outro problema: quem coordena as coordenações ad hoc?

Não há Planeta B, também não há risco zero

Não viveremos nunca num Mundo de risco zero. As zonas costeiras e os vales de rios são as mais vulneráveis a alterações climáticas, e são também as zonas onde se concentra mais de 50% da população e da atividade económica por todo o Mundo. O problema resulta muitas vezes de velhas opções, por exemplo, ao nível do planeamento urbano. Claro, o problema não é exclusivo de Portugal, ele é, por definição, global. E mesmo países mais ricos, geralmente vistos como muito bem organizados, têm tido problemas em enfrentar este tipo de eventos climáticos extremos. As cheias de Julho de 2021 na Europa Central, que resultaram em 196 mortos na Alemanha, são um exemplo disso. Mas a verdade é que a Alemanha é bem menos organizada e coordenada a nível nacional neste campo do que se poderia pensar. No caso da pandemia, por exemplo, vimos que é um país muito federalizado, com estruturas relativamente fracas de coordenação nacional, devido a razões históricas relacionadas com o trauma de um Estado nazi demasiado forte. O que só mostra que a abundância de recursos ajuda, mas não é a única questão. Significativamente, e apesar de tudo isto, também a Alemanha, estará a preparar a criação de um Conselho de Segurança Nacional.

Não estou a dizer que tudo se resolve com planeamento estratégico ou com uma estrutura de coordenação nacional na resposta a crises. Certamente que há lugar para estruturas especializadas e ad hoc. Claro que os municípios devem ter um papel importante e devem dar maior prioridade às suas estruturas de planeamento e gestão de risco, como Lisboa com os anunciados túneis (mas esta última tem recursos que faltam na maior parte dos demais). É claro que este é um problema muito complexo, e seria demagogia prometer soluções simples e garantidas. Repito, não iremos nunca viver em sociedades de risco zero, mas podemos e devemos gerir melhor a proliferação e intensificação de riscos no Mundo que temos.