A tribalização da política é tão terrível que nos impede de ver que, mesmo em partidos muito diferentes, como o PS e o CDS, há por vezes almas gémeas e até, quando os eleitores têm sorte, uma inspiradora capacidade de atingir consensos. Talvez não consensos sobre o futuro do SNS ou sobre a forma de salvar a Segurança Social — mas, pelo menos, consensos sobre as virtudes da família em política.

Em março de 2019, o ministro Pedro Nuno Santos foi envolvido na polémica do Familygate, quando a sua mulher foi nomeada chefe de gabinete do secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Parlamentares — e escreveu um longo post no Facebook a defender a justeza dessa nomeação. Agora, foi Francisco Rodrigues dos Santos, líder da JP e candidato a líder do CDS, a envolver-se a si próprio em sarilhos semelhantes. Num momento de grande iluminação política, Francisco Rodrigues dos Santos (também conhecido por “Chicão”) decidiu fazer uma crítica humorística ao presidente da Caixa Agrícola, que promoveu uma avença do banco com a sua mulher para garantir a sua própria “estabilidade emocional”. Vendo aqui uma oportunidade para a popularidade, Francisco Rodrigues dos Santos publicou no Facebook uma foto onde aparecia com a sua noiva e a frase “Estabilidade emocional”. O que pretendia ser um ataque foi um suicídio porque dá-se o desagradável caso de a noiva de Francisco Rodrigues dos Santos somar duas coincidências no seu currículo: é vice-presidente na direção da JP liderada pelo noivo; e, além disso, teve uma avença com o CDS na Câmara de Lisboa até muito recentemente.

À procura de uma saída para este desagradável problema auto-infligido, Francisco Rodrigues dos Santos decidiu inspirar-se noutro político com currículo “jotinha” — precisamente, Pedro Nuno Santos. E, assim, também ele escreveu um longo post no Facebook a defender a justeza das escolhas que envolveram a sua noiva.

O enredo dos dois posts de Facebook é igual, quase palavra por palavra. Primeiro, há a memória de uma bonita história de amor.

Pedro Nuno Santos escreveu: “Foi nesse percurso que conheci uma jovem militante da equipa concelhia do Duarte. Uma mulher bonita, divertida e com muita graça, inteligente, desafiadora e, sobretudo, competente. Ela era inquieta, rebelde, sempre pronta a desafiar e a questionar as minhas decisões”.

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E Francisco Rodrigues dos Santos, muitos meses depois, escreveu: “Como é sabido, apaixonei-me facilmente pela Inês. Namoramos quase há 6 anos, estamos noivos e vamos casar no próximo ano. A Inês é um exemplo da mulher moderna, empreendedora, líder, inteligente, competente e determinada”. E, ao Observador, acrescentou o detalhe de que “a Inês é a pessoa que diverge” de si e que “talvez seja” a sua “mais acérrima crítica”.

Depois do romance, vem a defesa da honra.

Pedro Nuno Santos escreveu: “A Catarina não merece ser menorizada no seu percurso profissional — que nada deve a mim — apenas por ser minha mulher. (…) A Catarina, que é a minha mulher e a mãe do meu filho Sebastião, é também a Catarina Gamboa: excelente profissional, pessoa de enorme competência e confiança — e hoje chefe do gabinete de Duarte Cordeiro”.

E Francisco Rodrigues dos Santos, tantos meses depois, escreveu: “Insinuar que o retorno do seu esforço, do seu talento, do seu trabalho e da sua credibilidade é algo que lhe é transmitido por inerência do homem que tem ao lado, e que não se justifica pelo seu valor, é não só um argumento sexista, que ofende todas as mulheres, como um insulto à sua dignidade e ao serviço abnegado que prestou ao partido e ao país, tantas vezes em sacrifício pessoal. Até porque o estatuto e a afirmação pessoal e académica da Inês tinham começado e estavam consolidados antes sequer de eu ter aparecido na sua vida”.

Terminada a parte mais pessoal, surge a teoria política: o centrista e o socialista estão juntos na defesa indignada de que nenhum ser humano pode ser “prejudicado” ou “discriminado” por proximidades sentimentais, esquecendo a motivação para a existência, nos países democráticos, de regras contra práticas como esta.

Pedro Nuno Santos escreveu: “Ninguém deve ocupar uma função profissional por favor, como ninguém deve ser prejudicado na sua vida profissional por causa do marido, da mulher, da mãe ou do pai”.

E Francisco Rodrigues dos Santos, vários meses depois, escreveu: “A Inês está a ser vítima de preconceito e de discriminação por ser namorada de quem é”.

Por fim, como não podia deixar de ser, aparece o clássico “Não fui eu”.

Pedro Nuno Santos escreveu: “Pouco depois de chegar a vereador da Câmara Municipal de Lisboa, o Duarte convida a Catarina para ir trabalhar com ele. Eu não tive qualquer influência na sua decisão; eu e a Catarina não estávamos sequer juntos nessa altura”.

E Francisco Rodrigues dos Santos, nove meses depois, escreveu: “Como é sabido, eu não sou nem dirigente do CDS, nem vereador do CDS, nem presidente da Câmara Municipal de Lisboa. A Inês foi convidada em Dezembro de 2017, atendendo ao seu perfil e competências, não por mim — que não tenho poderes para isso — mas pelo grupo da vereação do CDS, onde não me incluo e sobre o qual não exerço qualquer tipo de influência”.

Há uma velhíssima frase de Talleyrand sobre os Bourbon que descreve na perfeição Francisco Rodrigues dos Santos. É muito batida, mas é também perfeita: “Não aprenderam nada, não esqueceram nada”. O problema é quando os eleitores, por exemplo os do CDS, finalmente aprendem.