Em 2010, o Qatar foi o país escolhido para organizar o Mundial de 2022. As sociedades ocidentais, sempre tão cultas, informadas e moralmente superiores, precisaram de doze anos para perceber que o Qatar não respeita direitos humanos e que a escolha até pode ter estado envolta no manto da corrupção habitual da FIFA, e levantou-se para aí uma onda de indignação e pedidos de boicote aos jogos que, porque as indignações monotemáticas pelos vistos têm limites e também saturam, se desvaneceu assim que a bola começou a rolar. É uma espécie de consciência a duas velocidades, que também já se verificou com a Rússia: somos de uma lentidão inexplicável na análise, mas se porventura surgir alguém nos canais noticiosos a apontar o dedo numa direcção, levantado suspeitas, e se as televisões resolverem não se calar com o assunto, aí ninguém nos aguenta e somos até capazes de passar uma semaninha inteira a demonstrar toda uma indignação contida durante anos.

O último destes casos de ira selectiva manifestou-se contra a China e a sua política de «Covid Zero». Mas, mais uma vez, parecemos atrasados. Primeiro, porque a política chinesa não começou ontem. Segundo, porque se houve coisa que o ocidente em peso, salvo raras excepções, resolveu fazer em 2020 foi olhar para a forma como a China resolveu reagir a um vírus respiratório e achar que estava ali um modelo a seguir: usando a saúde pública como veículo, achámos por bem conferir aos Estados uma desproporcionada legitimidade para lançar políticas de controlo, submissão e segregação.

Bem sei que já estamos na fase em que estamos todos a fingir que os dois últimos anos não aconteceram, como quem varre a porcaria para baixo do tapete, mas ainda há coisas que valem a pena serem ditas. Uma delas é que no Ocidente tomámos decisões políticas e sociais, com o consentimento ou mesmo a pedido de populações amedrontadas graças a meios de comunicação social que ajudaram a semear o pânico e a irracionalidade 24 sobre 24 horas, 7 dias por semana, que não se coadunam com o «mundo livre» e «o nosso modo de vida» que, paradoxalmente, ainda achamos que nunca esteve em causa e pelo qual ainda batemos com a mão no peito.

Um dos grandes exemplos desta nova política do esquecimento é a coqueluche dos avançados mentais de serviço, Justin Trudeau, que resolveu declarar sonoramente o seu apoio aos protestos na China contra as políticas anti-Covid, abrindo os braços aos direitos humanos e à liberdade de expressão. O mesmo Trudeau que em Fevereiro deste ano reprimiu violentamente os canadianos que se manifestavam contra a política dos certificados de vacinação obrigatória ou que congelou contas bancárias desses manifestantes. Nós, no Ocidente, não somos a China, não é?

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Também a Nova Zelândia, outro dos grandes exemplos do mundo livre em estado de emergência sanitária, não é a China. Isso, porém, não impediu a sua chefe de Governo de decretar lockdown total do país quando por lá surgiu um caso positivo. Ou a Austrália, cujo Primeiro-ministro também vai erguendo a sua voz pela defesa das liberdades ocidentais, embora tenha tido não só lockdowns dos mais longos do mundo, mas também mandatos de vacinação obrigatória que impediam não vacinados de participar normalmente na vida social, ou até campos de quarentena – que noutras latitudes e com um responsável político menos querido dos media tinham sido baptizados com outro nome.

Mas que interessa tudo isto se nós não somos a China? Em França, por exemplo, o presidente nunca lançou uma cruzada contra não vacinados, pois não? E em Portugal nunca houve cidadãos espancados pela polícia só por se encontrarem na rua. Nunca houve pessoas sozinhas perseguidas nas praias. Nunca houve gente multada por comer na rua ou dentro do carro. Nunca houve pediatras perseguidos e alvo de censura pela própria Ordem dos Médicos só por terem arriscado dizer que as crianças não deviam ser vacinadas. Nós ouvimos sempre o Conselho Nacional de Saúde Pública antes de tomar decisões políticas de combate à pandemia, não nos limitámos a escolher a dedo um grupo de especialistas para o efeito. Nunca deixámos de ouvir o então presidente do Conselho Nacional de Saúde Pública, Jorge Torgal, um dos médicos mais experientes em epidemiologia, só porque ele tinha uma visão não catastrofista nem via a saúde pública através da lente de uma doença única, para passarmos a ouvir diariamente e em todo o lado os tais especialistas que nunca acertaram uma previsão e que até recebiam uns dinheiros da indústria farmacêutica, pois não? Caramba, nós não somos a China. Nós nunca criámos aplicações informáticas para monitorizar cidadãos. Nunca impedimos velhos de serem visitados pelas famílias quando permitíamos manifestações de partidos políticos. Estamos, por exemplo, a analisar com rigorosa atenção mediática e política o que se passa na provedoria de justiça europeia e no parlamento europeu relativamente aos contratos celebrados entre a Sra. Von der Leyen e a Pfizer, não é? Nunca deixámos velhos a morrer com falta de apoio em lares. Nós somos de uma humanidade inatacável. Nunca andámos para aí a chamar negacionista a qualquer alma que se lembrasse de dizer que uma política de lockdowns traria mais pobreza, mais doença e mais mortes do que a própria pandemia. Nós sempre respeitámos todas as opiniões. Nunca tivemos excesso de mortalidade por explicar. Não. Nós temos feito um escrutínio rigoroso e exemplar da mortalidade: se não é da pandemia, deve ser das alterações climáticas. Sabemos perfeitamente quantas pessoas morreram com problemas cardíacos, cancros ou outras doenças agravadas por se ter decidido congelar a saúde pública durante dois anos. Nunca encerrámos administrativamente pessoas, incluindo crianças, por causa de casos de «doentes assintomáticos» surgidos em turmas escolares. Nada disso.

E, acima de tudo, estamos politicamente prontos a responder por tudo o que foi feito, para apurar responsabilidades por tudo o que se passou. Por isso mesmo, recusámos criar uma comissão parlamentar de inquérito à gestão da pandemia. É que nós não precisamos, repare-se. Se já fomos informados de que a gestão foi exemplar, não nos vamos agora pôr para aqui com perguntas. O nosso SNS, o melhor do mundo, esteve durante dois anos a salvo, apesar dos números fora do normal de internamentos e urgências, não foi? Nós tivemos situações atípicas, sobretudo em Janeiro de 2021, de ocupação hospitalar, mesmo que os dados digam o contrário, não foi? Passou nas notícias e tudo, quem é que quer saber de dados?

Curiosamente, a gestão de tudo correu tão bem que os grandes partidos, PS e PSD, se aperceberam agora de que a Constituição que temos não é suficiente para proporcionar resultados mais do que exemplares na gestão das pandemias. Por isso mesmo, talvez, acharam por bem avançar com propostas de revisão constitucional em cima de um processo não avaliado, para que tudo aquilo que foi julgado inconstitucional passe a ser constitucional. Nós não somos a China: aqui, quando as regras do jogo não permitem atingir o resultado pretendido, alteram-se «democraticamente» as regras e não se fala mais nisso.

Numa coisa, de facto, e desta vez sem ironia, nós não somos a China: entre nós ainda há deputados livres que podem recusar avançar ou dar aval a estas propostas de revisão constitucional feitas em cima do joelho, e na ressaca de um episódio de dois anos que não foi sequer avaliado de forma independente. É a única coisa que se pode exigir neste momento. Já que PS e PSD, entre outros, recusaram constituir uma comissão de inquérito à gestão da pandemia, os seus deputados que tenham um mínimo de dignidade e recusem colaborar e votar favoravelmente propostas de revisão constitucional que, na melhor das hipóteses, violam direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Provem-nos que não somos a China. Com a lentidão a que costumamos responder a abusos de poder como este, somos capazes de só acordar colectivamente quando isto já não for propriamente um Estado de Direito. E talvez aí seja demasiado tarde para evitar a fúria de sociedades que estão cada vez mais adeptas do «fartismo» enquanto convicção política.