Nas últimas duas décadas, pessoas, empresas e instituições públicas aderiram massivamente às soluções digitais pelas facilidades que elas nos trazem. Vivemos uma revolução digital onde novas tecnologias nos simplificam processos, aproximam pessoas, ampliam oportunidades. A tecnologia tem vindo a alterar os comportamentos das pessoas, a integrar cadeias logísticas, a facilitar meios de pagamento, prestação de serviços, acesso acelerado à informação, patrocinando novas formas de entretenimento e até a forma de trabalhar.

Novas oportunidades trazem, no entanto, novas ameaças.

Por várias razões, não temos sido tão eficientes na tutela das ameaças quanto na adesão às vantagens do mundo digital.

Desde logo, há uma barreira difícil de ultrapassar: enquanto as vantagens são imediatamente tangíveis e percetíveis, as ameaças nem sempre são fáceis de antecipar e identificar. Se a isso acrescermos os graves problemas de alfabetização digital que ainda subsistem na maioria das pessoas que navegam nos ambientes digitais, e a própria estrutura da internet, pensada e projetada para ser resiliente e eficaz, mas não segura, temos um ambiente estruturante muito favorável para a afirmação do crime cibernético.

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O cibercrime está, além disso, cada vez mais sofisticado e criativo, pelo que a luta conta o mal muitas vezes faz-se com armas desiguais.

Por fim, há razões orçamentais significativas: as pessoas, o Estado e as empresas tendem a investir no digital pelas vantagens, mas nem sempre sobram recursos adequados para a segurança, o que se traduz necessariamente em riscos acrescidos.

O cenário, hoje, não é muito auspicioso. Grande parte de nossas infraestruturas essenciais estão conectadas em redes públicas e dependentes de sistemas digitais, assentes numa internet projetada para ser resiliente e compartilhada, mas insegura, vulneráveis ​​a ataques executados por agentes ao serviço de Estados com o objetivo de colocar em risco o nosso modo de vida. Para muitos, soa estranho que, em 2022, a tecnologia seja ela própria a antecâmara da nossa debilidade, e que as nossas liberdades estejam tão fragilizadas pela adesão massiva que fizemos a todo um conjunto de possibilidades que visam pretensamente melhorar as nossas vidas. Nas últimas décadas demos por adquiridas e irreversíveis certas conquistas políticas, ignorando – ou simplesmente esquecendo ou negligenciando – que as liberdades sempre foram ao longo da História conquistas dos povos, dos cidadãos. A promoção das liberdades nunca foi ao longo dos tempos desejada por quem exerce o Poder, algo que permanece até hoje. A tecnologia criada sem o escrutínio da lei e sem o polimento dos valores imanentes à humanidade tem em si um potencial totalitário, que os Estados, mesmo aqueles que se dizem democráticos, não deixam de explorar. Acresce que, no momento atual, algumas das grandes potências cibernéticas, como a Rússia, a China ou a Coreia do Norte, não bebem de nossa conceção de liberdade. E mesmo a maior potência global, os EUA, tem uma visão de democracia e de certos direitos fundamentais nem sempre alinhada com a europeia, valorizando abordagens securitárias a meu ver bastante questionáveis.

O poder cibernético desses Estados é significativo: basta pensar na capacidade das brigadas cibernéticas chinesas, batizadas de “Advanced Persistent Threats” ou “APT”, equipadas com satélites, soldados com competência para programar código e produzir malware específico, e com capacidades de processamento quase ilimitadas; ou no que tem sido a ação das agências russas de desinformação nas últimas décadas. Neste particular, valerá a pena recordar, a título de exemplo, o que a Europol escreveu, num relatório divulgado a 3 de Abril de 2020, no início da pandemia, sobre o aumento da desinformação em torno do COVID-19 levada a cabo não só por organizações criminosas, mas também por Estados e atores apoiados por Estados, procurando explorar a crise de saúde pública para obter não apenas lucros mas também para promover interesses geopolíticos, com consequências potencialmente prejudiciais para a saúde pública e para a comunicação eficaz da crise pandémica.

A forma como massivamente agências de desinformação ao serviço dos Estados totalitários exploraram as potencialidades da internet para amplificar o medo e promover visões do apocalipse, bloqueando a racionalidade e empurrando os governos para uma ação política muitas vezes indesejada por quem teve de assumir o papel odioso de decidir, contribuiu – resta saber, com que intensidade – para o atual estado de fragilidade económica e social com que temos agora, nas sociedades livres, de emergir no pós-Covid. Pense-se, ainda, no contexto da atual guerra entre Ucrânia e Rússia, como reagirão as nossas democracias se na sequência de um ciberataque na Europa ficarmos, por exemplo, sem comunicações móveis, ou sem acesso à energia, durante quatro ou cinco semanas. Certamente muitas pessoas acabarão por questionar a posição da Europa na guerra, não só alterando o curso atual dos acontecimentos, como o apego futuro em relação à liberdade: o nosso modo de vida é, num mundo digital, a maior fraqueza das sociedades livres, pois é aqui que os nossos adversários tentarão tirar vantagem, protagonizando ataques, para impor as suas agendas totalitárias. Por isso tenho afirmado que, mais do que ameaças nucleares, vivemos sob a sombra de um “Hiroshima digital”, perante o risco de um ataque de larga escala às infraestruturas essenciais que causariam um enorme dano ao nosso modo de vida e às sociedades de bem-estar que são o pilar das nossas democracias.

O mundo não vai voltar atrás, não vai haver menos digital no futuro. Se a nossa integração digital tende a aumentar, o que temos de perceber é como queremos organizar, com mais segurança e liberdade, este novo ambiente emergente, que veio para ficar.

Precisamos urgentemente entender que se o mundo está a mudar radicalmente, e de forma acelerada, por causa da nossa adesão ao digital, a sociedade, o modo de funcionamento dos Estados, das empresas e dos próprios cidadãos deve seguir o novo paradigma. Temos de saber pensar o presente e os pilares do futuro segundo os novos pressupostos, e não tentar emular o novo mundo segundo as regras e cânones de um tempo que se tornou obsoleto. O primeiro grande passo para inverter a curva crescente de riscos e ameaças – e até dos desafios do nosso bem-estar – não é tecnológico, mas epistemológico e – importa dizê-lo – ético: se há uma rutura civilizacional – porque estamos perante uma revolução industrial recheada de disrupções –, temos de ganhar equidistância e pensar o mundo como ele é, hoje, e em termos do futuro que se avizinha, em vez de continuarmos tão ancorados na pesada herança que naturalmente temos do que vem de trás, em muitas áreas onde as regras do passado não funcionam mais. Por exemplo, as estruturas de segurança, a forma de legislar ou a regulação, o trabalho, a previdência social, a prestação dos serviços públicos, hoje, e para o futuro, não podemos continuar a pensar todas estas expressões da realidade da mesma forma como as víamos no passado.

Nesse campo, os poderes públicos têm enormes responsabilidades. Desde logo, porque lhes cabe compreender como podem os recursos que são de todos acompanhar as mudanças, seja na tutela dos novos riscos, seja reorganizando a resposta pública às necessidades e aos problemas. Do mesmo modo, e porque é no plano legal que se fará a conformação da tecnologia, cabe à lei assegurar que no futuro o digital se alinha com os valores éticos e humanos que fazem parte do nosso padrão civilizacional, (sendo nesse campo de louvar o esforço europeu, na aprendizagem de perceber como se legisla sobre tecnologia).

Os que defendem, porém, como eu, que a pessoa precede o Estado, e que o papel fundamental na defesa dos nossos direitos e do nosso modo de vida é da responsabilidade de cada um de nós, não devem deixar de referir que cabe sobretudo às sociedades civis e aos cidadãos comuns reforçar as literacias necessárias para exigir e defender o património de valores que coloca as democracias liberais ao serviço das pessoas, travando a concentração de poder, em Estados e “big corporations”, de dimensão estatal, que resulta do modelo cibernético atual.

Nota final: Por estes dias muitos assinalaram o centenário do nascimento de AgustinaBessa-Luís, personalidade maior de um país cuja mediania ela nunca se cansou, com erudição e requintado humor, de desmontar. Quem leia o que por aqui vou escrevendo sabe da minha predileção por uma escritora com quem tenho inúmeras afinidades, e que não me canso de citar. Desde logo, afinidades familiares. Mas também de pensamento, de uma forma de ver as coisas que me é próxima pelas origens e referências. Separam-nos cinquenta anos. Une-nos o Porto. O desprendimento de quem não se levava demasiado a sério, mas sempre escreveu vinculada à verdade. A consciência de se ter nascido adulto desejando morrer criança. O gosto por Dostoievski. Nas obras de Agustina, que a perpetuam, nenhuma frase é supérflua ou vazia, tudo tem um sentido e um valor. Certo dia o meu pai, depois de a ouvirmos falar sobre a economia do tempo, mostrou-me uma lista com todos os livros que desejava ler durante a vida, uma lista imensa que o levou à seguinte conclusão: “não viverei o suficiente para ler tudo o que gostaria, por isso, faz como nós, não percas tempo com má literatura, ela impede-te de ler o que realmente te interessa”. Numa época onde a moralidade é crescentemente uma fachada de aparência, vazia de referências reais, escreveu, “na nossa sociedade, que se entende por permissiva, não há afinal homens exemplares. Há só leis que substituem o exemplo; há só alíneas morais que estão em vez dos atos reais e da sua humanidade”. Esta frase, que alinha, com uma outra, de Sir IsaiahBerlin (“no luxury and no comfort, no delight and no pleasure, no new liberty and no new discovery, no praise and no flattery, which we may enjoy on our journey, will mean anything to us if we have forgotten the purpose of our travels, and the end of our labours”), ainda hoje me persegue nas ações do quotidiano. No centenário do seu nascimento, presto-lhe aqui a minha homenagem, celebrando a sua obra e recordando a sabedoria quase aristotélica de uma das suas frases mais célebres: “Fim – o que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa”.