A internet é, desde a sua criação, sinónimo de liberdade. A ela se deve a maior enciclopédia alguma vez compilada e o caminho – paulatino e hoje irreversível – para a sociedade em rede. A origem libertária da invenção explica, em toda a linha, o seu sucesso e a maior parte dos seus vícios.

Referência na reflexão sobre a regulação do ciberespaço, Lawrence Lessig descortinou quatro elementos fundamentais que condicionam a dominação do ciberespaço pelas formas tradicionais de regulação: o mercado, os usos sociais, a lei e a arquitetura. Atentemos neste último. Olhando a invenção, o autor viu nas características técnicas da internet (o seu software e hardware) as razões para uma arquitetura de liberdade. A rede foi desenvolvida no meio militar e adaptada à utilização civil no meio académico, sem preocupações de monta com a identificabilidade dos sujeitos e a segurança em geral. Esta visão das forças que concorrem pela ordem num mundo sem terra, interoperável e de vários idiomas com tronco comum, fizeram dela um caso estranho de autorregulação, baseado na observância de padrões tecnológicos unitários, seguidos em conformidade pelos techies reunidos em organismos como o ISOC ou o IETF. A inexistência de uma ordem internacional suficientemente organizada e a capacidade limitada de enforcement dos meios tradicionais contiveram, numa primeira fase, o avanço da ordenação do ciberespaço. Contenção essa, também explicada pelas preocupações com o constrangimento que uma ordem normativa experimental – cheia de processo e procedimentos romanos – poderia infligir no advento económico potenciado pela web.

A complexificação dos conteúdos online, a monetarização dos dados pessoais e a propagação do social media a todas as esferas da vida privada criaram novas relações de tensão, que alteraram os usos sociais e o comportamento do mercado. A digitalização da vida humana levada a cabo euforicamente nos últimos 30 anos resultou num conjunto de ameaças protagonizadas por atores individuais, corporativos e soberanos: desinformação, fraude eleitoral, usurpação de propriedade intelectual e vigilância massiva são fenómenos catalisados pela omnipresença das redes e que reclamam atenção e uma intervenção coordenada pelos poderes do Estado. Que legitimidade tem o Twitter para, de acordo com as suas políticas de utilização, restringir a mensagem do líder eleito de um país democrático? Quem deve decidir a eliminação de conteúdos online, quando se alega a violação de direitos de terceiro? São questões difíceis de responder atenta a diluição da barreira entre factos e opiniões e o potencial danoso da desinformação e dos conteúdos ilícitos em viagem à velocidade da luz.

A capacidade de computação em permanente crescimento é o elemento tecnológico central para compreender o caminho que percorremos. Na ausência de um poder central – e atento o volume, escala e velocidade -, na Era da Informação a regulação por entidades privadas foi sendo preferida à ordenação estadual num equilíbrio ténue à margem do direito estadual, mas controlada pelos interesses económicos e soberanos. A escolha de um porteiro para a internet – veja-se o Comité de Supervisão criado pelo Facebook – sempre colidirá com a circunstância da rede ser a praça pública do milénio: todos querem lá estar e ter uma voz. A notícia da lei de proteção de dados na China, aparente salvaguarda em coexistência com um sistema sensor, dificulta uma visão estritamente legalista baseada no poder dos Estados para resolução dos problemas da regulação e da segurança do ciberespaço. Qualquer regra do mundo offline, por mais elementar ou inata que possa parecer, nada vale online se não encontrar aconchego nos átomos do ciberespaço. Aqui, o código é lei, posto que uma ordenação efetiva das ações no ciberespaço só é possível quando o cimento digital o permita. Desta feita, a regulação do ciberespaço, inspirada numa ideia de equiparação com a realidade offline, precisa de caminhar para a perceção de um meta-espaço complexo, umas vezes arena de gládio da globalização, outras vezes caixa de segredos do eu digital. Mas, ainda que a regulação nas formas mais clássicas seja difícil, ou mesmo impossível se atendermos à insubordinação dos bites & bytes, a tecnologia sempre será, pelo menos num primeiro momento, programada por seres humanos, sujeita à condição ética e escolhas dos seus developers. Numa altura em que se discute a limitação (e eventual falência) das medidas criptográficas, a(s) arquitetura(s) da(s) internet(s) volta a ser determinante na garantia de segurança e da privacidade, esta última transformada em conceito dinâmico e espartilhado.

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As escolhas na feitura da tecnologia definirão indelevelmente o futuro da nossa sociedade. A correta alocação do risco digital, por exemplo, na perspetiva das bases de dados criadas e geridas pelas organizações, será determinante para o seu posicionamento futuro, assentando o cumprimento de normas de proteção de dados muito mais do que uma mera obrigação regulatória, num imperativo de estratégia corporativa e gestão de carteira. A esse respeito, sugere-se que os dados pessoais devam em breve ser encarados como liabilites, tendo em conta o potencial danoso para as organizações que os tenham à sua guarda, associado à respetiva quebra de confidencialidade.

O desfecho das eleições norte-americanas poderá ser decisivo no futuro da ordenação do ciberespaço. A herança da presidência Obama-Biden, no que respeita à neutralidade da internet e ao free speech, aliada à experiência de Kamala Harris, enquanto procuradora-geral da Califórnia, poderão marcar o tom de uma nova fase na regulação da internet, impondo o enforcement das big tech e o fim do mundo sem lei. O já anunciado processo antitrust contra a Alphabet tem como pano de fundo a concorrência, é certo, mas encerra muitas outras questões, como a integração vertical dos fornecedores de acesso e prestadores de conteúdo, e o esquema económico em volta da internet – hoje em contágio aos restantes setores de atividade, das finanças à logística. As propostas anunciadas pelo presidente-eleito incluem maior financiamento público às infraestruturas críticas de comunicações e ameaças sérias face à ingerência estrangeira no espaço cibernético norte-americano. A decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia deste verão, pondo em causa as transferências de dados entre a União e os EUA – em parte por falta de garantias adequadas do sistema judiciário norte-americano -, deverá reforçar, a breve trecho e com caráter de urgência, a necessidade de uma lei federal de dados pessoais, precipitando assim uma nova fase de revolução na ordenação do ciberespaço.

Deste lado do Atlântico, onde o edifício legal ganha cada vez maior envergadura, em breve, o acesso à rede alcançará o estatuto de direito humano. Nas palavras da Presidente da Comissão Europeia, a democratização do acesso (e do conhecimento sobre novas tecnologias) é fundamental à preparação de uma geração mais competente e igualitária. Esta visão é corroborada pela estratégia Open Software, elemento essencial para o debate sobre liberdade e pluralidade da tecnologia, pronta a acolher inovação e a melhorar a vida humana. Portugal terá uma palavra a dizer na discussão da futura Carta Europeia dos Direitos Digitais, no âmbito da Presidência do Conselho da União Europeia. A Europa deve munir-se de capacidade humana e técnica para criar e gerir prestadores e infraestruturas que garantam a nossa soberania. É fundamental que o velho continente se mantenha o novo grande centro de reflexão e regulação da tecnologia, papel reforçado pelas recentes iniciativas legislativas nos domínios do big data e da inteligência artificial. É fundamental que os poderes públicos se capacitem e relacionem com o código informático. Sem compreender o código, não haverá lei.