Descer o limite de velocidade em Lisboa. Cortar o trânsito na Avenida da Liberdade. “Contra a guerra”, e “pelo clima”, e outras aflições fingidas com a “dependência de combustíveis fósseis”. A esquerda juntou-se outra vez, agora à volta deste papel que aprovaram contra Carlos Moedas. Depois voltaram atrás, e puseram-se a falar de “estudos” quando perceberam a repugnância pública que a coisa causou. Os moradores da avenida zangaram-se, informando pacientemente que aos domingos e feriados também precisam de entrar e sair de casa. Os comerciantes protestaram por não terem sido ouvidos, como se não existissem ou como se a sua presença fosse indiferente à avenida e à própria cidade. Obviamente, não é. E as pessoas que compram naquelas lojas moram ou estão instaladas noutros pontos de Lisboa. Verdades simples que o PS finge desconhecer em nome da sua proverbial duplicidade. Ou quando precisa de se juntar ao radicalismo, um vício do qual o PS não dá sinais de se querer livrar.

Há nesta posição algumas intenções práticas, só não são exactamente as que aparecem à superfície. A esquerda não imagina que a política de trânsito em Lisboa tenha algum efeito sobre a guerra, não é infantil a esse ponto, mas é suficientemente imoral para instrumentalizar a guerra a seu favor. E a esquerda também não quer saber do clima, nem dos combustíveis fósseis, como insiste em mostrar-nos sempre que glorifica as greves do Metro ou dos comboios da CP, únicos transportes simultaneamente colectivos e movidos a energia “limpa”. Em bom rigor, todas as intenções expressas são falsas no papel que uniu a esquerda para uma política de oportunismo e pura demagogia.

Há nisto sobretudo intenções simbólicas. No plano local, estamos perante uma exibição de forças, como já aconteceu quando os mesmos partidos se juntaram para rejeitar o orçamento da Câmara; ou, pouco depois, quando voltaram a entender-se para proibir o Alojamento Local. Obrigar, limitar, proibir, está-lhes na massa do sangue. A esquerda perdeu Lisboa para Carlos Moedas e o PS não há maneira de se conformar; o Estado é a casa do PS, por direito de casta e ponto final. Entre os vereadores, na Câmara, e entre os deputados, na Assembleia Municipal, vive-se um clima de atrito, de desafio, de uma constante medição de forças que o jornalismo ganhava em acompanhar de perto e com boa atenção. Os jogos de alianças no poder central são ensaiados na Câmara de Lisboa, sem excepção, e há mais de vinte anos.

No plano geral, a extrema-esquerda detesta a indústria automóvel. Em parte porque representa o poder do capitalismo e dos mercados abertos; é fonte de avanços tecnológicos e postos de trabalho, de indústrias periféricas, como as borrachas, a electrónica, os moldes, a eficiência energética ou o turismo. A indústria automóvel produz vivacidade na economia e – oh!, sacrilégio – está nas mãos de empresas e capitais privados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando a indústria automóvel esteve nas mãos do Estado, e dos sacrossantos capitais públicos, produziu o Trabant, universalmente aclamado o pior carro do mundo e um dos mais ridículos. Nos anos 80 ainda o equipavam com um motor a dois tempos de 26 cavalos; atingia, de rampa abaixo, uns vertiginosos 90 quilómetros por hora. Moldavam-lhe a carroçaria numa pasta de plástico reforçada com bocados de madeira e restos de algodão; uma fibra de vidro de fancaria, presumivelmente feita a partir de peúgas desirmanadas. Havia quem esperasse 17 anos pela entrega do carro. Às vezes trazia equipamentos extra, como luzes de marcha-atrás.

Contrariando este atraso de vida, o automóvel é hoje ao mesmo tempo um produto e uma das grandes provas do sucesso do capitalismo.

Mas a esquerda detesta, acima de tudo, o automóvel particular. Porque o automóvel particular substancia uma extensão das liberdades individuais e representa a autonomia dos cidadãos perante o Estado. A esquerda não percebeu que sem automóvel particular não existiria indústria automóvel e, portanto, também não existiriam veículos para transporte público colectivo.

Nenhum destes aspectos interessa à esquerda; além da “guerra”, do “clima”, e dos “combustíveis fósseis”, também não lhe interessa o bem estar dos cidadãos, nem quer fazer a “redistribuição da riqueza”. Tudo isto é baixa política e baixa retórica instrumental. O que a esquerda quer é fazer a redistribuição do poder a favor do Estado, ou seja, a favor de si própria.