As crianças não aprendem sozinhas, do zero, à mesma velocidade e não aprendem todas da mesma maneira. Mas a escola foi criando esse equívoco ao longo dos anos. E deixou que o ensino obrigatório — que foi a maior revolução tranquila da Humanidade, o grande instrumento de democracia social e a razão de resgate de milhões de crianças ao trabalho infantil e da sua devolução à infância — tivesse “escorregado”, vezes demais, para uma “produção em série” que  transformou a escola numa  “linha de montagem” de “jovens tecnocratas de sucesso”. Onde os rankings, centrados sobretudo nos resultados dos exames, introduziram o desconforto da existência de manipulação de resultados que nem sempre nos permitiu perguntar se a escola estaria a cumprir a sua missão. Por mais que o tempo absurdo de momentos diários relacionados com a escola, o volume de trabalho semanal que lhes é exigido, a transformação da escola em espaço de guarda prolongada de crianças e o modo como lhes foi sendo, sucessivamente, tirado tempo de recreio, contribuiu para que a escola se transformasse, de vez em quando, no “trabalho infantil” do século XXI, tivesse contribuído para a “epidemia atípica” de défices de atenção e de transtorno de “hiperactividade” que temos vindo a observar, fosse o motivo maior para a introdução massiva de quimioterapia como “corrector” de sobressaltos do desenvolvimento e, sobretudo, fosse tirando infância às crianças.

O modelo de escola do passado já morreu. Mas inquieta reconhecermos que a escola não soube reinventar-se. E a responsabilidade disso é de todos nós. E, em muitos momentos, aquilo que pareciam passos em frente, talvez não o tenham sido. A forma como, devagarinho, o jardim de infância se foi tornando mais em pré-escola do que devia ser passou a ser, estranhamente, reclamada pelos pais. A discussão em relação à reutilização dos manuais escolares sobrepôs-se às questões indispensáveis sobre os seus conteúdos. A introdução de tablets, desde muito cedo, na aprendizagem não foi acompanhada pela discussão indispensável acerca da utilidade da motricidade na aprendizagem da leitura e da escrita. A introdução pedagógica de quadros interactivos e de datas-show não foi acompanhada pela discussão acerca da forma como a escola, apesar desses instrumentos preciosos, não pode continuar, sobretudo, a transmitir conhecimentos de forma expositiva, passiva, pouco participativa e pouco criativa, ao mesmo tempo que ignora a sabedoria das crianças na construção do conhecimento e menospreza a formação dos professores.

A escola precisa de ser reinventada! E, no entanto, a pandemia obrigou a escola a reinventar-se mais em dois meses do que o terá feito em muitos, muitos anos. É claro que, pelo caminho, ficaram alunos que não tiveram acesso à escola por não disporem de computadores, de internet e de telemóveis com dados. Houve imensos alunos cujo rasto foi perdido por muitos professores. Houve crianças de 8 e de 9 anos a estarem sozinhas em casa. Houve pais a fazer de professores e de explicadores. Houve pais a realizar testes e trabalhos que deviam ser feitos pelos estudantes. Houve os maiores índices de desigualdade social que temos visto na escola, considerando muitos anos. Houve escolas a realizar o mesmo plano de trabalho diário (desta vez, em casa). Escolas a propor páginas para ler. Escolas a exagerar nos trabalhos de casa. Escolas demissionárias em relação aos seus compromissos com os alunos.  Mas, no entanto, a pandemia obrigou cada escola a reinventar-se por si e cada professor a manifestar inventivamente as suas singularidades e o seu potencial. Por mais que os nossos filhos tenham estado seis meses sem ir à escola! E os sucedâneos que encontrámos para lhes dar, por mais que generosos, acentuassem desigualdades, criassem uma nova vaga de necessidades educativas especiais e deixassem as crianças que necessitam de educação especial mais afundadas nas suas dificuldades. E podem ter contribuído para tantas ilusões de falsas aprendizagens que se torna urgente perguntar que escola vamos ter em Setembro. Quando as limitações de espaço e o número de professores nos parecem encaminhar para que, em nome das regras de protecção das crianças, as escolas não tenham espaço senão parametade das crianças de cada vez. Quando o envelhecimento dos docentes e os seus índices de risco à exposição do coronavírus irá acentuar as limitações de professores disponíveis de forma alarmante. E quando uma segunda vaga de coronavirus se torna insistentemente plausível.

Estamos no ano zero da reinvenção da escola. Onde os conteúdos terão de ser mais interativos entre si. Os pais e os professores mais interactivos do que nunca. Onde os formatos tradicionais de aprendizagem e as novas tecnologias vão ter de ser mais interactivos do que alguma vez já foram. Onde o ensino presencial e o ensino à distância vão ter que começar a interagir. Mas onde os ecrãs não podem passar de “inimigos públicos” das crianças a aliados de todas as horas da escola e dos pais. Onde o professor não pode ser um actor secundário do processo de aprendizagem. Onde os pais não podem ser os agentes do ensino à distância. Onde os pais não podem – semana sim, semana não – estar em trabalho à distância, porque nem as tarefas, nem o seu estatuto profissional ou o seu grau de autonomia lho permitem fazer. E onde a telescola não substitua a escola.

Estamos em finais de Junho. Daqui a pouco mais de dois meses estamos no regresso à escola. E é inacreditável, considerando aquilo que as melhores perspectivas pandémicas nos permitem ou (plano B) a perspectiva duma segunda vaga de infecção, que não se gere um debate público urgente que vá no sentido de estarmos esclarecidos acerca da escola que vamos ter em Setembro. Sabendo nós que a escola não será (mais) igual à escola que tínhamos em Março. É verdade que as turmas serão partidas ao meio? É verdade que os alunos ora irão à escola ora estarão em casa? Ou é, antes, verdade que as turmas irão ser desdobradas, com turmas de manhã e turmas de tarde? É verdade que os recursos pedagógicas que a pandemia nos trouxe vieram para ficar? É verdade que as escolas irão funcionar num regime misto (b-learning)? É verdade que se estenderá um mesmo regime de aulas aos alunos de todos os níveis de ensino? É verdade que um dos pais se arriscará a trabalhar à distância, semana sim semana não, ou a reclamar um estatuto de apoio à família para garantir a educação das crianças ou a redefinir o regime da guarda diária dos seus filhos? É verdade que todas as crianças terão um computador pessoal e internet ao seu dispor? É verdade que os manuais escolares serão, cada vez mais, plataformas digitais? É verdade que os professores irão repartir-se por formatos combinados de aulas? Que escola podemos esperar? Por tudo isto — e não tomem o desabafo como um manifesto de ingratidão (até porque a forma como se fez ao cataclismo pandémico foi elogiável) — é urgente e é inadiável que o Ministério da Educação esclareça os pais, os professores e o país acerca do dia depois de amanhã da escola. Recordo que o regresso à escola já começou para as famílias. Porque esta é altura em que, antes de férias, os pais planeiam escolas, actividades extra-curriculares e tudo o mais que faz parte da logística muito complexa da educação de uma criança. Será que vamos aproveitar para reinventar a escola ou, pelo contrário, ficaremos entregues ao improviso, ou à expectativa de não anteciparmos medidas na esperança de que “vai correr tudo bem”? Digam-nos, por favor, com que escola podemos contar!

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